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01
dezembro
2016

Basile Berro D’Água

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoOs tempos que estamos vivendo têm me trazido muita saudade de uma outra cidade, de um outro país. São tempos de intolerâncias – no plural mesmo, repara só em volta! –, canalhices, tragédias e sombras. Pensando nisso, conto hoje aqui uma história já narrada por mim antes, em outras paragens, mas que serve para refletirmos sobre a vida, que, afinal, é muito maior do que o samba ou – a propósito – o futebol.

É, no fundo, o pedaço de um outro Rio de Janeiro, uma cidade da verdadeira sabedoria da rua, do bar, do samba (é claro!) e dos seus personagens. Por isso, em homenagem ao Rio que amo desde sempre, mas que a cada dia se afasta mais e mais de uma essência que a faz ser única e apaixonante, que conto a seguir a minha pequena história do Basile Berro D’Água.

Em agosto de 2005, quando conheci o Samba do Trabalhador e o clube Renascença (já falei sobre eles aqui mesmo na coluna), passei a viver momentos de rara beleza, em incontáveis segundas-feiras etílico-musicais naquele quintal do Andaraí. Nas primeiras semanas, ainda não tinha sido apresentado ao Gabrielzinho da Muda, talento e voz que admirei à primeira vista (e de quem também já falei por estas bandas). E entre os muitos códigos não escritos do lugar, havia um que eu não entendia bem, mas que me chamava atenção pela graça e pela freqüência com que era repetido ao longo da tarde por aquele então menino que cantava demais.

Algum tempo depois, perguntei pro meu novo amigo:

– Cara, quem é Basílio?

– Ba-si-le! – o Gabriel me corrigiu, de primeira, enfatizando as sílabas com aquele grave que Deus lhe deu.

– Ah, então é isso que volta e meia você fala no microfone? “Alô, Basile”? Sei que é o coroa que vem toda segunda e fica bebendo cerveja na caneca de alumínio que traz de casa. Mas quem é?

– Edu, o Basile é o maior boêmio da Tijuca, um dos maiores do Rio. Pra te resumir, ele é o ídolo do Aldir Blanc no quesito boemia – foi mais ou menos o que me disse o Da Muda.

Pronto. Sem saber, Basile já me era um mito. Passei a observá-lo e a admirar ainda mais o jeito que ele tinha de levar a vida.

Basile: o bêbado mais sóbrio que já vi; fantástico personagem urbano da Zona Norte carioca; figura que poderia ter saído dos traços do Lan. Basile, habitante de um Rio todo feito de bar, futebol, samba e carioquice, uma cidade que sempre esteve muito menos no cartão postal do que nas esquinas dos botequins vagabundos.
Pois bem. Nunca troquei uma palavra com o grande Basile. Apenas fitava-o de longe. Em várias ocasiões tive vontade de me aproximar para cervejas e conversa, mas não o fiz.

Tenho certeza de que Basile nunca coube nesse mundo idiota que vivem a nos impor, esse feito só de corrida por dinheiro e enfeitado pela juventude dourada dos comerciais de tevê e das selfies em geladas telas de telefones móveis. Talvez fosse um anti-herói, deslocado nesse tempo-espaço em que (sobre)vivemos, tão vazio de amizade e alegria.

Soube da morte dele por acaso, se não me engano em 2008, no 1º de abril – cheguei a achar que era mentira. Basile, segundo contavam, bebia todos os dias. No fim das contas, pode ter sido essa levada da vida que lhe trouxe a morte, aos 70 anos. Mas quem, entre os que realmente importam, perde tempo com esse “no fim das contas”?

Até hoje, sempre penso: antes daquela morte-morrida, daquela morte-morte, já não teria o Basile morrido uma vez, morrido de uma vida engravatada e sem poesia? Morrido como “exemplar funcionário de barba escanhoada e pasta debaixo do braço” para renascer boêmio, como um Quincas do Jorge Amado, festejado por malandros e sambistas?

Teria sido aquela uma segunda morte? Quantas vidas terá vivido o nosso Basile Berro D’Água, esse grande cachaceiro, sambista, tijucano, seresteiro, carioca?

Não sei, nunca vou saber.

Sei que, certa vez, numa terça-feira qualquer quando ele ainda estava na ativa, fomos, eu e o Gabriel, beber uns maracujás e algumas geladas no Bar do Momo, na Muda. Umas quatro da tarde e ele pergunta pelo Basile ao garçom. Pois o nosso herói tinha acabado de passar por ali, “todo perfumado, penteado e de calça comprida”, segundo relatos de testemunhas na calçada, a caminho de uma seresta que acontecia em algum salão das redondezas.

Gabriel sorriu de canto, eu segurei o meu queixo que caía, e pensamos: “Sabe viver, o danado”…

Dá para entender do que se trata? É possível ver que hoje o Rio e o Brasil caminham para uma caretice sem fim, um retrocesso de décadas em todas as áreas da vida em sociedade?

Alô, Basile! Um brinde, meu velho! Se não for por mais nada, que seja por um Rio de Janeiro cheio de ginga, muito mais bonito e que cabia todo em você.

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