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20
outubro
2016

Camunguelo

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoCamisa bege com listras verticais marrons, calça branca, sapato marrom e a inseparável boina branca. O samba comendo solto na tarde quente da Zona Norte do Rio. O sujeito se aproxima e pergunta se pode se sentar. Sabia quem ele era e há tempos acompanhava a sua arte. Um “fica à vontade, amigo!” foi tudo o que saiu.

Depois de algum silêncio, criei coragem:

Camunguelo, que diabo tem nessa pasta rosa que você carrrega?

Ah, rapaz, é a papelada da minha aposentadoria. Acabei de vir do INSS, eles estão me enrolando há um tempão – revelou.

Foi assim que acabou para mim o “mistério da pasta rosa”. E que começou naquela tarde, quase dez anos atrás, uma conversa maravilhosa, com o samba rolando no fundo, mesas de plástico e cerveja pra matar a sede – essas coisas do samba e de um Rio menos metido a besta que ainda era (é?) possível encontrar. Foi assim que eu, do nada, tive a honra de ter na minha humilde mesa o grande Cláudio Camunguelo (ou, segundo os papéis oficiais da Previdência que repousavam na pasta rosa, Cláudio Lopes dos Santos).

Camunguelo era um flautista fabuloso, partideiro, compositor-cronista do dia a dia carioca. Tinha uma ginga incrível quando cantava e tocava e uma postura leve que contrastava com o ofício que o havia sustentado por mais de 30 anos: foi estivador (era da estiva que tentava se aposentar, “mas esse INSS…”, dizia, antes de soltar uns palavrões). Ele havia sido um daqueles inúmeros trabalhadores do cais do porto, área desde sempre maltratada e menosprezada, mas que deu ao samba talentos como Mestre Fuleiro, Sebastião Molequinho e Aniceto (todos do Império Serrano), João da Baiana, Padeirinho, Xangô da Mangueira…

Naquela tarde no Andaraí, o papo percorreu Portela, Zeca Pagodinho, São Jorge, lembranças da estiva, do Cacique de Ramos, de Silas de Oliveira, de Nelson Cavaquinho. Enfim, uma salada maravilhosa, um passeio pela memória dos subúrbios e de seus sambas, suas histórias, seus personagens.

Fala, Florisbelo!”, foi como o tinha saudado, mais de 20 anos antes, um moleque galhofeiro chamado Zeca Pagodinho. “Eu te conheço?”, mandou de volta o Camunga, até que foi apresentado pelo irmão do Pagodinho àquele franzino de chinelo de dedo que chegava ao pagode. Nasceria ali uma amizade que renderia algumas parcerias e clássicos das boas rodas de samba, como “Sinuca de Bico”, “Coração Fingido” e “Amarguras”, o primeiro que fizeram juntos (De que vale e vida se eu não tenho a sorte? / Se a alma é fraca pra que corpo forte?), imortalizado em gravação do Fundo de Quintal.

Naquela ocasião, Camunguelo me contou que estava com 14 sambas já gravados para o seu primeiro (e tardio) CD.

Todo gravado, cara, há mais de um ano parado, abandonado lá no estúdio de Copacabana – lamentava.

O disco estava cheinho de sambas inéditos (incluindo um chorinho), e alguns clássicos, como “Gurufim” (Eu vou fingir que morri / Pra ver quem vai chorar por mim), sem falar em participações do próprio Zeca, de Nei Lopes, e dos arranjos de Paulão Sete Cordas e Humberto Araújo.

Camunguelo morava “perto de Vista Alegre”, mas andava pelo Rio todo. Era nessas andanças, num passado ainda mais distante, que às vezes encontrava Nelson Cavaquinho tocando num bar em Cordovil e empunhava a sua flauta, em um dueto que até hoje deixa a gente arrepiado só de imaginar. E foi assim, incansável andarilho do samba, que um dia na segunda metade dos anos 70 parou lá na Rua Uranos, na quadra de um tal Cacique de Ramos, onde o couro comia depois do futebol das noites de quarta-feira, no fundo do quintal, Fundo de Quintal – e o resto é História.

Cadê a flauta? – perguntei.

Quebrou, no conserto. Vou ficar uns dias sem ela – resignou-se, enquanto eu pensava em como é difícil aceitar esse Brasil onde um músico extraordinário permanece quase desconhecido e só consegue ter um único instrumento.

Sem papel nem caneta nem gravador, eu pedia aos céus que conseguisse guardar pelo menos algumas coisas para contar depois (o que fiz num antigo blog que virou livro e retomo aqui para os amigos da Rádio Arquibancada). De repente, já estávamos falando da Portela, outra paixão do Camunguelo. Ele contou que nos anos 60 saía na bateria da azul e branco, tocando repique. E lembrou que, quando os baluartes da Velha Guarda foram vergonhosamente barrados na Sapucaí, em 2005, ele não só estava lá como se virou com a malandragem de quem sabe das coisas:

Quando aquele carro quebrou, eles (a Velha Guarda) ficaram naquele vai-não-vai… Eu desci do carro rapidinho e fui junto com a escola. Estava todo vestido, bonito, não ia ficar de fora! – contou, morrendo de rir.

As histórias dele – que antes de trabalhar no porto serviu na FAB (“Na época braba da ditadura, malandro!”), que conheceu Silas de Oliveira (“O pai dele deu aula pros meus pais”), que tocou com Candeia e com Nelson Gonçalves – eram tantas e tão saborosas que eu torci para aquela conversa não acabar tão cedo.

Mas não deu. Chamado na roda para trabalhar um pouco, ele pediu licença e foi cantar (e encantar) a gente. Quando fico tanto tempo sem ir ao samba, como agora, lembro-me com muita saudade daquela tarde quente e quase mágica que por acaso passei ao lado do imortal Cláudio Camunguelo.

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