A caramboleira do samba

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoO samba era maravilhoso e cheio de descobertas para mim. E rolava em volta da mesa, na roda, sem telha nem lona nem nada, tendo como teto apenas as folhas do pé de carambola. Assim era o Renascença, o meu “Clube do Samba”, quando o conheci, na tarde da primeira segunda-feira de agosto de 2005. Pouco mais de dois meses antes, havia nascido sob aquela caramboleira o Samba do Trabalhador, uma das grandes criações artísticas de Moacyr Luz, carioquíssima invenção que no próximo 30 de maio completa doze anos de existência.

Como a roda da minha vida, a do samba também mudou desde então. A gente chegava às duas da tarde e o negócio já estava bonito à beça. Tinha pouca gente, tinha muito samba. Lindos, originais, muitos deles novos para mim, eram todos extremamente bem tocados e bem cantados pelos componentes da mesa. Do suingue pagodeiro do Vandinho ao timbre rascante do “russo” Abel, da grande voz grave do Gabriel da Muda (então com 19 anos!) ao talento do Moacyr (que ali apresentava novas músicas quase toda segunda), tudo era mágico para mim. Inesquecível. Eu esperava a semana toda para viver aquilo de novo.

Naquele tempo, para entrar, primeiro não se pagava nada. Depois, desembolsava-se uma coisinha à toa, dois ou três dinheiros. Sinto saudade de quando aquela roda significava – mesmo! – uma espécie de resistência máxima: acontecia, de fato, em plena tarde de segunda-feira e era um soco na cara dos que passam a vida só “contando vil metal” (apud Belchior).

Naquele tempo, o improviso não perdia um samba. A gente, sem saber, sabia que ia pintar uma surpresa, ainda mais quando se tratava de uma segunda qualquer, sem chamariz de férias nem de feriado nenhum. Foram muitos os sambistas que deram o ar da graça naquele quintal acimentado da Rua Barão de São Francisco, 54. Mas os que mais eu guardo no coração, até hoje, são os compositores desconhecidos que iam lá cantar os seus sambas, muitos dos quais velhíssimos conhecidos de todo mundo. O pessoal vinha abaixo quando descobria que determinado samba (fantástico e já gravado pelos bambas do gênero) estava sendo levado bem ali, pelo seu autor anônimo: gente como Ratinho, Pedrinho da Flor, Éfson, Chiquinho Vírgula, Zuzuca do Salgueiro, Bandeira Brasil, Adauto Magalha, Cláudio Camunguelo, entre tantos e tantos e tantos outros.

E tinha ainda o Vladimir no violão, o Winter nos chocalhos, o Jorge Alexandre na percussão, o Luiz Augusto nos tambores (ainda tem), o Daniel Neves no Sete Cordas (ainda tem), o outro Daniel (que também cantava), o Júnior de Oliveira no batuque (ainda tem). Tinha o Rosalvo do acarajé e as meninas dos caldinhos. Tinha a Dona Pipoca. Tinha o Basile. Tinha o Pardal fotografando. E tinha o Moacyr que, além de tudo, ainda distribuía cachacinha, no gargalo, para os que estavam em volta da roda se acabando de cantar e sambar. Quem viveu os primeiros tempos é que sabe como era bom.

Hoje, é bem mais caro para entrar, começa quando a tarde já quase acabou, a cerveja é só em lata, tem muito teto e muita lona, tem disco e tem DVD, tem camisa à venda e, pena, o inesperado não faz mais tanta surpresa assim. Coisas do mundo, minha nega. Não faz mal. Continua linda, a roda – do samba e da vida. E continua imprescindível a batida que ajuda o coração da gente a pulsar mais cadenciado para encarar toda a canalhice que nos assola por aí.

Hoje, o velho pé de carambola do Rena – que já testemunhou a arte de Luiz Carlos da Vila a Neguinho da Beija-Flor, de Dorina a Arlindo Cruz, de Hélio Delmiro a Monarco, de Marquinhos Satã a Toninho Geraes e a tanta gente mais – está meio que deixado de lado. Mesmo quando a atual reforma ainda não estava em curso, ele já estava à margem da moderna cobertura de telhado que protege a gente da chuva.

Mesmo assim, afirmo, segue abençoando os artistas – da música ou da vida – que vão àquela roda tão especial. Pode não parecer, mas a caramboleira do Renascença Clube integra o primeiro time das frondosas árvores que sempre protegeram o melhor do melhor do samba e seus trabalhadores nesse Rio que cada vez mais se afasta de si próprio. Ela é, eu quero crer, da mesma nobre linhagem de colegas mais idosas e mais famosas, como as mangueiras que batizaram a Estação Primeira (“Quando eu piso em folhas secas”…) e a tamarineira do Cacique de Ramos (“e até as tamarineiras são da poesia guardiãs”).

Ao longo desses 12 anos de vida e resistência do Samba do Trabalhador, a caramboleira do Rena foi porto seguro para as nossas angústias e para o nosso “afogar de mágoas”. Mas também, como a histórica (e já falecida) jaqueira da Portela cantada pela Velha Guarda, ela “acompanhou as nossas glórias, as nossas vitórias, em idos carnavais”.

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