Entrevista exclusiva: a bossa e o talento de João Roberto Kelly

Compositor ataca censura às marchinhas, mostra sua costumeira e aguçada ironia em duas músicas inéditas e revela: “Caymmi um dia me disse que queria ter feito a ‘Cabeleira do Zezé’”

CLÁUDIO RENATO E EDUARDO CARVALHO

Passa das cinco e meia da tarde de uma terça-feira quente quando chegamos ao apartamento de João Roberto Esteves Kelly, em Copacabana. O último grande compositor de marchinhas carnavalescas e um dos quatro maiores de todos os tempos – junto com Haroldo Lobo, Braguinha e Lamartine Babo – nos recebe afetuosamente ao lado da mulher, Maria Helena Arduini.

Com uma excitação de criança arteira, oferece-nos “uma cervejinha” prometida desde a véspera e pega um papel com a letra manuscrita da sua mais nova marcha, ainda inédita: “Mulheres Rodadas”. Batendo com a mão esquerda na coxa para marcar o ritmo, canta à capela o que depois tocaria ao piano: “Eu quero uma mulher rodada / Mulher zerinho não está com nada / Eu quero uma mulher rodada / Mulher zerinho não está com nada / (…)Eu quero ver o feminismo / Sem modismo, sem paixão / Que entenda como brincadeira / Minha “Cabeleira” e o meu “Sapatão(…)”.

Nós nos olhamos, aplaudimos e entendemos estar diante de uma brilhante resposta, em verso e prosa, à polêmica criada neste pré-Carnaval pelos que querem proibir ou boicotar marchinhas de cunho supostamente racista ou homofóbico. Este seria o caso, segundo alguns, de músicas como “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”, do próprio Kelly, e de “O Teu Cabelo Não Nega”, de Lamartine.

Eles se acham tão progressistas, mas estão fazendo o jogo da direita. Censura rima com ditadura – diz.

Maria Helena traz as latinhas de cerveja. Brindamos e engrenamos numa conversa de quase três horas que passam voando. Kelly revela que ninguém menos do que Dorival Caymmi, de quem foi amigo, uma vez lhe disse: “Eu queria ter feito a “Cabeleira do Zezé””. A história da sua marchinha mais famosa, aliás, é contada em detalhes, inclusive que o Zezé – o já falecido garçom Antônio José, do extinto bar São Jorge, também em Copa – vibrou quando conheceu a música, em 1964.

No bate-papo que reproduzimos o mais fielmente possível abaixo, Kelly fala da sua formação musical, dos programas de televisão que apresentou e musicou, de política (“A nossa democracia hoje é um instrumento que está desafinado”, desabafa), de religião (“Esse Papa dá uma marchinha!”), dos Beatles (“Harmonicamente, eles são o anti-jazz, são a simplicidade genial”), da Bossa Nova e de suas referências na vida e na arte.

No fim, ele toca e canta ao piano músicas como o lindo samba “Boato”, primeiro sucesso de Elza Soares, “Rancho da Praça Onze”, parceria com Chico Anysio e “Partido Alto nº 3”, samba bem-humorado de crítica social e malandragem que acabou de fazer, entre outras composições.

A noite já havia caído sobre o Rio de Janeiro – ai de nós, Copacabana! – quando nos despedimos de um dos maiores compositores de música popular do Brasil. Um ícone, uma lenda que nenhuma pretensa imparcialidade, jornalística ou não, pode nos impedir de reverenciar e atestar que, como uma espirituosa e incensurável marchinha, João Roberto Kelly, a caminho dos 79 anos de idade e dos 60 de carreira, continua sendo um patrimônio da cultura brasileira.

Rádio Arquibancada – O que você acha dessa polêmica criada em torno de algumas marchinhas de Carnaval?

João Roberto Kelly – No começo, eu tomei como uma brincadeira de um pessoal que queria se promover e tal. Depois eu entendi o sentido da coisa e achei desnecessária e, até certo ponto, ridícula. Porque mexe com músicas consagradas, algumas com mais de 50 anos, como é o caso de “O Teu Cabelo não nega”. Achei sem propósito algum. Agora, isso de proibir, não canta no meu bloco, não canta naquele, isso tudo me remeteu a um período muito triste do Brasil que foi a ditadura. Porque censura, meu filho, rima com ditadura. Mas não só rima não, está muito perto, é pari-passo com a ditadura. Porque habituar a garotada a censurar, ah, é tudo o que quer essa turma que ainda tem o cheiro dessas coisas antigas. As pessoas ainda não perceberam o perigo que é isso aí. A censura começa dessa maneira, o pessoal achando natural, engraçadinho, e aí vai…

R.A. – Você acha que é exagero estabelecer uma relação entre esse movimento, essa polêmica, com um movimento maior ainda que são os governos de direita? Aqui e pelo mundo, governos mais totalitários, candidaturas totalitárias como a do deputado Bolsonaro, o Donald Trump nos Estados Unidos… é exagero estabelecer uma relação assim?

Kelly – Acho que é exagero dependendo da maneira como você colocar a situação. Eu vejo nisso algo bastante… não acho que seja um negócio ainda muito sério, mas acho que é um embriãozinho enjoado, entendendo? Agora, vocês falaram em ditadura, em Bolsonaro, né? Vocês falaram em Bolsonaro?

R.A. – Falamos, falamos.

Kelly – Pois é. Eu acho que isso aí mais para o Bolsonaro do que para o Lula, por exemplo. Isso muito mais pra um Bolsonaro do que pra uma esquerda. Eles [refere-se aos que querem proibir as marchinhas que supostamente agridem as minorias], que se consideram tão progressistas, sem querer estão fazendo – quer falar em política? Eu vou falar! –, estão fazendo o jogo da direita, que é a censura, é ver coisinha onde não tem. Eles se dizem tão progressistas, mas estão fazendo um jogo totalmente errado, erradíssimo. Não é por causa das minhas músicas, não, até foi bom ter isso porque cada vez toca mais, não tem problema nenhum. Nem com as minhas, nem com “Índio quer Apito”. Se dois ou três blocos não vão tocar, aí pelo Brasil mais de mil estão tocando. Então, é bobagem nesse aspecto. O que eu estou falando, já que vocês puxaram o lado político do negócio, é que isso aí é um desserviço muito grande à cabeça dos jovens.

R.A. – É um desserviço à democracia, né, Kelly?

Kelly – Olha, eu não vou tão longe. Mas é um embrião, é aquela sementinha que foi jogada. E a garotada gostou, isso é o que me preocupa.

Kelly brindeR.A. – (chegam latinhas de cerveja) Vamos brindar, , Kelly?

Kelly – Ô, querido, obrigado.

R.A. – Você vai fazer uma marchinha pro Bolsonaro (risos)?

Kelly – Eu, não. Eles é que deviam fazer. Aliás, há três anos eu fiz, com o Eduardo Dussek, uma marchinha que antevia essa onda de censura que está aí agora.

R.A. É mesmo? E como é?

Kelly – “Eu sou gostosa, maliciosa, não leve a mal / Politicamente incorreta / Sou a marchinha de Carnaval / Eu sou do jeito que eu quiser / Saio de homem ou saio de mulher / Sem essa de pisar no meu tapete / Sua censura que vá pro cacete”!

R.A. – Excelente! Três anos atrás, é? Premonitória…

Kelly – Pra você ver…

R.A. – Qual é a sua filiação política, no sentido filosófico? Você é um cara de esquerda, é ligado às questões populares, como é que você pensa?

Kelly – Eu sou uma pessoa inteiramente voltada para o povo. Sem demagogia. Eu posso me considerar uma pessoa de centro-esquerda. De verdade, não é um rótulo. Eu estudei Direito. E o governo emana do povo. Então, o povo tem que ser muito mais valorizado do que é. Muito mais. Eu gosto de gente, gosto de conversar com as pessoas. A minha tendência política é a igualdade, baseada a filosofia cristã.

R.A. – Você é católico?

Kelly – Sou católico, com muita honra. Eu tenho fé. Para mim, religião significa fé.

R.A. – E nós temos um grande homem na religião católica hoje que é esse Papa, né?

Kelly – Sim!

R.A. – Esse papa dá uma marchinha, não dá?

Kelly – Dá várias! Eu ainda não fiz, mas vou fazer (risos).

R.A. – Você nasceu em 1938, quando teve a Intentona fascista no Brasil. Então, você passou pela 2ª Guerra ainda criança, passou por uma tentativa de golpe em 54 (quando o Getúlio se matou), pela consolidação do golpe em 64…

Kelly – Eu vivi tudo isso, vi tudo.

R.A. – Você acha que o Brasil está vivendo hoje uma situação democrática normal?

Kelly – Não, de maneira nenhuma. Eu acho que nós estamos fugindo da democracia. A nossa democracia é um instrumento que está desafinado.

R.A. – Mudando de assunto, eu sei que você gostava muito do Braguinha.

Kelly – Muito, muito. Gostava e respeitava.

R.A. – Qual é, pra você, o maior compositor de marchinhas? Segundo: qual é a pessoa na música brasileira de quem você mais gosta? E terceiro: qual é a música e o músico no mundo de que você mais gosta?

Kelly – O compositor de Carnaval de quem eu mais gosto não é o Braguinha, ele seria o segundo. É o Haroldo Lobo. Esse foi o que mais me influenciou. Compositor do “Índio quer Apito”, do “Alalaô”… era um compositor que eu apreciava muito. Eu gostava muito do Braguinha também, com ele eu convivi. São considerados os quatro maiores compositores de marchinha o Braguinha, o Lamartine, o Haroldo Lobo e eu.

R.A. – E fora as marchinhas e as músicas de Carnaval, de quem você gosta na música brasileira? É Chico Buarque, Tom Jobim, Milton Nascimento, Dorival Caymmi…

Kelly – Quem sintetiza a música brasileira é o Dorival. Parece que ele previa o futuro da música no Brasil. Ele tem músicas, sambas-canções maravilhosos, como “Sábado em Copacabana”, “Marina”… e tem a parte toda praiana, coisas lindas, então a obra dele é fundamental.

R.A. – E é curioso porque ele projeta uma coisa totalmente revolucionária – o movimento Tropicalista, por exemplo, não existiria sem ele – e, ao mesmo tempo, ele era influenciado por Debussy e Bach, ouvia muita música clássica.

Kelly – Isso, isso. E ele gostava muito também dos clássicos americanos.

R.A. – E você, qual é o clássico de que você gosta mais?

Kelly – Debussy e Chopin. Toquei muita música do Chopin. Os prelúdios do Chopin são uma coisa fantástica,

R.A. – Mas, voltando ao Dorival…

Kelly – Eu convivi com ele, conheci o Caymmi quando fui fazer um show em Porto Alegre nos anos 60 e achei o Caymmi uma figura adorável. E ele, modéstia à parte, sempre gostou das minhas músicas também. Ele era um fã da “Cabeleira do Zezé”. Ele adorava e uma vez disse pra mim que tinha vontade de ter feito a “Cabeleira do Zezé”… isso não publica não, é só entre nós…

Kelly com quadro de quando jovem ao fundoR.A. – Ah, Kelly, isso nós temos que publicar, isso é fantástico, o Caymmi é o Caymmi, não vamos prometer nada (risos)…

Kelly – Tá bom, tá bom. Ele me disse isso uma vez, os filhos dele sabem disso e do carinho que nós tínhamos um pelo outro. O Danilo [Caymmi] mora aqui na rua. Então, eu acho o Caymmi a síntese da música brasileira, ele foi um profeta da nossa música, ele mostrou tudo. E ele dizia pra mim: “Eu só nunca fiz uma marchinha”. Além do Caymmi, eu gostava muito também das músicas de uma dupla que eu achava, assim, a cara da noite, a noite do Rio. Se a noite tem uma característica musical, deve muito a duas pessoas: Luís Reis e Haroldo Barbosa. Esse som da noite seria o de músicas como “Nossos Momentos”, “Meu Nome é Ninguém” (“Foi assim / A lâmpada apagou”…), e mesmo os sambinhas jocosos que eles tinham, como “Cara de Palhaço”, “Palhaçada” e muitos outros.

R.A. – Ainda hoje, de cada, digamos, 15, 20 marchinhas, pelo menos cinco das mais populares são suas. Quais são as suas que mais tocam hoje?

Kelly – “Cabeleira do Zezé”, “Mulata Bossa Nova”, “Maria Sapatão”, “Colombina”… “Colombina, onde vai você? / Eu vou dançar o iêiêiê”, isso toca pra burro…

R.A. – Qual a que te dá mais direito autoral? “Cabeleira do Zezé”?

Kelly – É… mais ou menos equiparada com a “Mulata Bossa Nova”. Agora, a “Bota a Camisinha”, lançada pelo Chacrinha, também toca muito. Tenho uma, chamada “Paz e Amor” (“Paz e amor, paz e amor / Guerra não senhor”…), que toca muito…

R.A. – Dá liga essa coisa de parceria em marchinha? Ou você prefere fazer só?

Kelly – Em geral eu faço só. Mas a parceria dá certo, sim. Por exemplo, na “Cabeleira do Zezé” o Roberto Faissal é meu parceiro.

R.A. – Você já contou muitas vezes, mas conta de novo a história de como nasceu a “Cabeleira”.

Kelly – Naquela época, 1963, 64, eu trabalhava na TV Excelcior, naqueles programas ao vivo no cinema Astória, em Ipanema. Eu musicava dois programas, o Times Square e o My Fair Show, um com o [Carlos] Manga, outro com o Maurício Sherman. Então, aquilo me cansava muito porque também tinham os ensaios antes dos programas e tal. Aí, de noite eu vinha aqui pra [Rua] Princesa Isabel, pro bar São Jorge, que ficava ali na esquina com a praia. Era um bar que tinha uma sinuca, às vezes eu até jogava, era um bar gostoso, eu encontrava os amigos… Um dia, eu vi lá um garçom que já estava aderindo à nova maneira de as pessoas se vestirem na época, era o início da influência dos Beatles e, paralelamente, daquela juventude transviada e tudo mais. Esse garçom se chamava José Antônio, vulgo Zezé. E eu fiquei observando durante algumas noites. Até que numa noite eu disse pra ele: “Ô, Zezé, vem cá! Se eu fosse um desenhista, ia fazer uma caricatura sua porque você é uma figura. Mas, como não sou desenhista, vou fazer o que eu sei fazer que é uma marchinha de Carnaval”. E aí nasceu (ele cantarola) “Olha a cabeleira do Zezé / Será que ele é? / Será que ele é?”…

R.A. – E ele gostou?

Kelly – Ele ficou louco de alegria, ele vibrava!

R.A. – E vivo ainda o Zé Antônio?

Kelly – Não… nós já procuramos saber… um dia, no começo dos anos 80, a Glória Maria, da TV Globo, fez uma reportagem comigo e localizou o Zezé. Ele apareceu com uma bandeja, foi muito bonito aquilo…

R.A. – Voltando ainda mais no tempo: como foi a sua transição de um compositor com formação clássica para um mestre da composição popular no Brasil?

Kelly – Eu tive um irmão, que faleceu muito cedo, aos 40 e poucos anos, chamado Fernando. Ele gostava muito de música, tinha muito ritmo, então eu comecei cantando com ele, imitando os conjuntos vocais da época: os Anjos do Inferno, Quatro Ases e Um Coringa… E o que eles cantavam? Marchinha, samba. Eu tocava bumbo e o meu irmão também, instrumentos de percussão. Então, eu sei o repertório todo daquela época (cantarola): “Nós, nós os carecas / Com as mulheres somos maiorais”… “Nega do cabelo duro / Qual é o pente que te penteia?”. Essa seria censurada (risos)… Depois, eu via em casa a minha mãe, a minha avó, tocando piano. E eu me apaixonei pelo piano e comecei a tocar e depois fui estudar no Conservatório de Música. Ou seja, a minha semente foram aquelas músicas populares lá de trás, que eu trazia comigo, e aí foi natural começar no popular, mesmo depois dessa formação de músico. Eu fui ao contrário, do popular para o clássico.

R.A. – E você fez Direito também, né? Fez onde?

Kelly – Na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, que era no Catete. Depois virou a UERJ. Na mesma turma do Geraldo Vandré.

R.A. – É mesmo? Colega do Vandré? Isso ninguém sabe!

Kelly – Foi meu colega, nós nos formamos juntos. Mas depois não tivemos contato artístico.

R.A. – Por falar no Vandré, você nunca participou dos festivais de música daquela época. Você nunca se interessou?

Kelly – Não, eu não gostava. Eu trabalhava muito em televisão, musiquei muito programa, eu não tinha muito saco pra festival, sabe? Não me atraía aquele estilo de festival, muito metido a besta. Tanto que ficaram [como sucessos] pouquíssimas músicas, e as que ficaram foram as mais populares.

R.A. – “A Banda”…

Kelly – É, “A Banda”, “Carolina”, “Ponteio”, do Edu Lobo…

R.A. – Como você entrou profissionalmente para a música?

Kelly – O meu pai, Celso Kelly, era jornalista. E uma vez, na ABI [Associação Brasileira de Imprensa], o Geisa Bosco disse pro meu pai: “Celso, você tem um filho que anda tocando por aí, na noite”…

R.A. – Ele te entregou, né? (risos)

Kelly – E ele disse pro papai que o filho dele tinha falado sobre mim e perguntou se eu fazia músicas boas. O papai ficou meio sem graça e disse: “Olha, na minha opinião, ele faz umas coisas bonitas, sim, umas músicas gostosas, brejeiras, outras mais românticas”. Então, o Geisa pediu para eu ir lá mostrar minhas músicas pra ele no Teatro Jardel, que ficava na esquina da Rua Bolívar com a Nossa Senhora de Copacabana.

R.A. – Isso em que ano?

Kelly – Em 58. Ali eu comecei. Eu tinha marchinhas, sambas, sambas-canção… e eu tive uma surpresa quando ele me convidou pra musicar a próxima Revista dele, que seria “Sputnik no Morro”. Daí que surgiu o meu primeiro samba gravado, o “Samba do Teleco Teco” (Kelly canta): “Samba que não tem teleco teco / Lá no morro é chaveco, não é samba, não / A turma bate o samba no original / Pra mostrar que o malandro é 100% nacional / Samba americanizado / Lá não tem opinião / Porque o morro não aceita importação / Deixa a cuíca roncar para a mulata gingar / Ser patriota é zelar pelo que é nosso, do país / Fazer um samba dissonante / É vestir uma cabrocha elegante / Com modelos de Paris”.

R.A. – (aplausos) Maravilha…

Kelly – Aí começou o negócio. Do teatro eu fui para o disco na editora Vitale. Eu costumo dizer que, antes das minhas marchinhas, eu fazia muita crítica em “sambas de teleco teco”, entendeu?

Kelly ao piano 4R.A. – Kelly, a Nara Leão ficou conhecida por trazer pra cena musical os compositores do morro. Qual é a tua relação com os compositores do morro?

Kelly – O meu programa Rio dá Samba era isso que você está falando. Eu resolvi fazer um programa mergulhando nas raízes da música popular brasileira. Era um programa com mulatas, com o pessoal das escolas de samba… daí que nasceu (canta) “Gatinha, que dança é essa / Que o corpo fica todo mole”… Revelei um monte de gente, Neguinho da Beija-Flor, Dicró… E lá eu levava e convivia também com os antigos. Por exemplo, o Jamelão. O Jamelão era muito amigo meu. Eu era a única pessoa que o Jamelão tratava bem na vida (risos)! Ele era mal-humorado, mas me adorava… Ele ficava com um apito na boca durante o programa inteiro. Eu dizia pra ele: “Jamelão, você é o meu diretor de harmonia, você que tem que manter a ordem dessas mulatas”.

R.A. – Que beleza…

Kelly – Então, eu levava todo mundo: o Pelado da Mangueira, o Gracia do Salgueiro, o Jorginho do Império, o Toco da Mocidade… essa turma toda das escolas.

R.A. – Isso foi na TV Rio?

Kelly – Começou na Rio, mas o auge do programa foi na TV Tupi. Durou 11 anos esse programa, todo sábado, com muita audiência. Tudo ao vivo.

R.A. – Kelly, o “Bole Bole”, que você cantarolou agora há pouco, é genial, genial. É a menor música do mundo (risos)…

Kelly – Olha, o Miltinho escutava o “Bole Bole” no programa e dizia que queria aprender e gravar a música um dia. Eu disse que era muito fácil e mostrei pra ele: “Gatinha, que dança é essa”… e o Miltinho aprendia acompanhando no pandeiro, era o jeito dele pegar as músicas, afinal ele foi o ritmista dos Anjos do Inferno, era um grande ritmista também. Então, depois que eu cantei, ele disse: “Muito bom, mas agora canta a música, Kelly”. E eu disse: “Já acabou, Miltinho!” (gargalhadas). E ele: “Mas é uma maravilha, não tem uma segunda parte?”. Eu falei: “Nem segunda nem terceira, porque se botar fica demais”.

R.A. – Claro, genial, o recado já foi dado. É um espírito minimalista, ?

Kelly – Exatamente.

R.A. – Kelly, você falou muito do Caymmi. Que outro cantor, compositor você admira?

Kelly – Roberto Carlos. Pra mim é insuperável. Porque é o tal negócio: o compositor que eu gosto não é no papel, na promoção que é feita em cima dele, é na música, na música. Então, escuta o Roberto e resolvido o assunto. Não precisa falar nada. Você quer que eu defina o Roberto Carlos? Bota um disco dele pra tocar. definido ali. Até porque as coisas que ficam são as coisas boas. O público, em geral, é uma peneira, o público depura as coisas. O que fica é o que fica e acabou.

R.A. – No começo dos anos 60 você tinha vinte e poucos anos. O que você achou do fenômeno Beatles?

Kelly – Ah, eu gostei desde o início. Eles mudaram a estética e a harmonia da música. Vou fazer um paralelo entre a música dos Beatles e a Bossa Nova. A Bossa Nova era toda baseada numa harmonia mais jazzística, mais americana, mais moderna pra época, aqueles acordes dissonantes e tal. Tanto que os grandes músicos de jazz gostaram muito da Bossa Nova porque se sentiam muito familiarizados com a harmonia. Os Beatles vieram com algo completamente diferente. Embora com o ritmo pra frente, acelerado, a harmonia dos Beatles remetia quase que à Renascença.

R.A. – Exatamente. Eles pegaram uma influência daquela música francesa do século XVII…

Kelly – Isso aí. Eles eram o anti-jazz. Então, se você tocar, por exemplo, uma música em Dó maior, que é um tom simples, qualquer músico de Bossa Nova vai tocar um Dó, Si, Mi, Sol, Si, uma sétima aumentada… Os Beatles é Dó, Mi, Sol, Dó!. Aquele acorde “quadradão”, !. Agora, feito de maneira genial! Eles pegaram esse tipo de música bem conservadora e fizeram letras bem-feitas e melodias que soaram completamente diferentes de tudo.

R.A. – É a simplicidade genial, ?

Kelly – A simplicidade genial. Você definiu muito bem. Porque era completamente diferente da música que se fazia no mundo inteiro, que eram músicas caminhando para harmonias mais modernas, mais complexas. Então, os Beatles eram isso e eu gostava muito. Por exemplo, a música “Yesterday”: aquilo é um tratado sério de música antiga, harmonicamente falando. Mas dentro de um ritmo moderno. Eles combinavam aquele suingue gostoso, da balada e do iêiêiê, com uma coisa bem antiga. E ficava lindo. São geniais.

Kelly quadros na paredeR.A. – De quem você gosta mais na Bossa Nova?

Kelly – O João Gilberto mudou tudo, né, com aquela batida. Porque, no violão, a batida, o ritmo, você faz com a mão direita. E a harmonia com a esquerda. Então, nessa levada da mão direita o João é imbatível. Mas, pra mim, a genialidade da harmonia da Bossa Nova está em duas pessoas de quem eu gosto muito, o Carlinhos Lyra e o [Roberto] Menescal, esses dois são fantásticos.

R.A. – Qual a música sua de que você mais gosta?

Kelly – Eu gosto muito das melodias que fiz para programas de televisão, como as aberturas de Times Square e Praça Onze. Agora, música romântica eu gosto muito da minha música “Boato”, que foi o primeiro sucesso da Elza Soares (ele canta): “Você foi um boato / Só agora eu sei”, um samba bonito, pesado.

R.A. – E música de outro?

Kelly – Noel Rosa, todas.

R.A. – Essa marchinha que você cantou quando a gente chegou, “Mulheres Rodadas”, é a sua mais recente?

Kelly – É. Eu acabei de fazer outro dia. Eu vi esse movimento todo de polêmica e resolvi fazer porque não vou ficar batendo boca.

R.A. – E qual foi a primeira marchinha que você fez?

Kelly – Ah (ele serve mais cerveja)… Foi daquela época do meu começo profissional. Chamava-se “Sputnik”, fiz algumas antes dela, mas ela foi um marco, a primeira gravada…

R.A. – Como é?

Kelly – Ah, é engraçada, fiz aproveitando uma piada (ele começa a bater na perna para marcar o ritmo e canta): “Agora é chique falar de Sputnik / Mas ninguém sabe o mistério da questão / Quando eu pergunto ninguém responde, não / Por que botaram uma cachorra em vez de um cão? (risos)”. Chamava-se Laica, a cachorra que foi no foguete [russo], ? Aí continua: “A Laica, poupa espaço no Espaço / E evita tanto embaraaaaço / Cachorro ia dar alteração / Um poste lá em cima não é sopa, não!” (risos).

R.A. – Isso em que ano?

Kelly – Eu compus em 57.

R.A. – Então é até redondo, 60 anos de marchinhas em 2017, hein? E eu acho que é a mesma verve, a mesma pegada até hoje, com as “Mulheres Rodadas”…

Kelly – Eu concordo.

R.A. – Canta “Mulheres Rodadas” de novo pra gente, por favor?

Kelly – “Eu quero uma mulher rodada / Mulher zerinho não está com nada (repete) / Eu quero uma mulher sabida, colorida, genial / Pra me ensinar, com muita linha / A fazer marchinha para o Carnaval”. Vejam só…

R.A. – E a segunda parte?

Kelly – Aí repete o refrão e diz: “Eu quero ver o feminismo / Sem modismo e sem paixão / Que entenda como brincadeira / Minha “Cabeleira” e o meu “Sapatão”…

R.A. – É maravilhoso isso, é maravilhoso… Kelly, e o teu piano velho, cadê ele?

Kelly – Ah, lá no quarto dos fundos. Eu custei muito a vir pro teclado, sabe? Mas esse aí faz som de piano também. Agora, de vez em quando eu vou lá no outro, que é que há?

R.A. – Você torce pra que time?

Kelly – Fluminense!

R.A. – E escola de samba?

Kelly – Ah, eu sou Mangueira…

R.A. – Você tocaria alguma coisa pra gente, Kelly?

Kelly – Lógico, com o maior prazer.

R.A. – E depois a gente vai cantar um pouquinho contigo também (risos).

Kelly – Vocês querem que eu toque o quê?

R.A. – O que você quiser…

Kelly – Então vamos lá, vamos começar pelas “Mulheres Rodadas”.

R.A. – Kelly, muito obrigado.

Kelly – Eu que agradeço, foi um prazer imenso.

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