A colorida aquarela da família Silas de Oliveira

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoSão onze e seis da manhã da última quinta-feira de março quando encontro Luiz Carlos da Silva Junior na plataforma da estação Catete do metrô. Ele me apresenta a mulher, Carla Moreno, e embarcamos os três num vagão da Linha 2 rumo ao subúrbio do Rio de Janeiro. Quarenta minutos depois, o calor ventilado do começo do outono carioca nos recebe quando saímos em Vicente de Carvalho. Descemos a passarela driblando a pequena multidão e avistamos o carro pedido minutos antes pelo aplicativo. Ele nos levará ao nosso destino naquele dia: a casa 217 da Rua Guaíba, em Brás de Pina.

Luiz Carlos é Junior de Oliveira. Junior, percussionista de mão cheia, é neto de Silas de Oliveira. Silas de Oliveira – patrimônio imortal do Império Serrano, do samba e da cultura do Brasil – é, como se sabe, o maior compositor de sambas-enredo de todos os tempos. É à procura do autor de “Aquarela Brasileira” (para alguns o melhor samba-enredo já feito), “Heróis da Liberdade”, “Apoteose ao Samba”, entre tantas outras obras-primas, que estou nesse dia. E o que encontrei você pode ler, ver e ouvir em detalhes nesta sexta-feira (7/4), em reportagem exclusiva para a Rádio Arquibancada feita para homenagear Silas e o Império quando a escola faz 70 anos (comemorados no último 23 de março) e quando se completam 45 da morte dele, no próximo 20 de maio.

Chegamos ao sobrado da Guaíba depois de comprar, num depósito-botequim da vizinhança, um engradado de cervejas de um litro por singelos R$ 6,50, cada. Afinal, seria preciso regar o papo e o churrasco feito ali mesmo, na calçada que, apesar dos tantos pesares que estragam a cidade, ainda lembra o “subúrbio nos melhores dias” cantado por João Nogueira. Na casa, já nos aguardavam três dos quatro filhos vivos do grande Silas e de Elane dos Santos, sua mulher e companheira da vida toda, descendente de alguns dos fundadores do Império: Vera Lúcia Assumpção de Souza, 69 anos; Elenice dos Santos Reis, 62; e José Mário dos Santos Assumpção, 49. Apenas Silas dos Santos Assumpção, 52, não pôde estar presente por motivo de trabalho.

Poucas vezes na vida fui tão bem recebido em um lugar. Poucas vezes me senti abraçado, acarinhado, bem-vindo daquele jeito. Deu vontade de não anotar nada, não gravar, não perguntar. Só viver. Mas a gente sempre dá um jeito (ou tenta!), tira uns truques do bolso e consegue conciliar a exatidão de cada informação com o respeito máximo pela subjetividade da emoção que brota o tempo todo num momento como esse.

Bebemos, conversamos, comemos e até lacrimejamos (por fora e, principalmente, por dentro). Rodeados por sobrinhos, primos, noras, amigos, eles me contaram histórias, falaram das lembranças que cada um tem do compositor e também do pai que Silas foi, recordaram alegrias e tristezas, mostraram-me troféus e documentos históricos, entre eles um álbum com recorte de jornais que o próprio compositor separava e guardava e um caderno com letras manuscritas por ele. Também disseram quais são os seus sambas favoritos. E cantaram.

O orgulho que eles todos têm de Silas Oliveira de Assumpção – que chegou ao morro da Serrinha aos 19 anos, em 1936, e ajudou a fundar o Império Serrano, em 47 – transborda a cada palavra e se faz ouvir em cada silêncio. Essa atmosfera de amor e saudade está em todos e em cada um: na vivência maior de Vera (que via o pai cantando para que a mãe decorasse os trechos dos sambas enquanto ele os ia compondo); na doçura de Elenice (ao lembrar o pai companheiro que levava as filhas para o colégio e acompanhava a feitura dos deveres de casa); na emoção em estado bruto do caçula José Mário (que perdeu o pai aos 4 anos de idade, mas sabe de cor e canta todos os sambas com impostação de voz e solenidade de arrepiar); e na admiração de Junior (quando me contou já ter ouvido pessoalmente do grande Monarco da Portela que, lá no passado, mostrava a Silas os sambas que compunha para que o mestre os “aprovasse”).

Aos 39 anos e o único da família que ganha a vida no meio do samba – o mesmo meio do avô que não chegou a conhecer –, Junior fez questão desde o começo, mas sem verbalizar isso, que a conversa fosse em família e com a família. Há meses tentávamos marcar o que na minha cabeça seria um papo entre nós dois. Mas só durante aquela tarde em Brás de Pina pude entender o acerto dele em fazer questão de que a entrevista fosse com os mais velhos.

– Ainda estou construindo a minha trajetória. Eles estão vivos pra contar. Então, eu não posso e nem quero passar por cima disso – revelou-me um sábio Junior enquanto me levava, de carona com um primo seu, para ver e fotografar o prédio no número 51 da Rua Granja, ali perto, onde Silas morou com a família nos seus últimos anos de vida.

Em declarações públicas de amor que faz, Junior se refere à mulher, Carla, como “minha caixa de lápis de cor”. Pego a ideia emprestada e digo que, para mim, conhecer um pouquinho mais a família Silas de Oliveira, sua simplicidade e sua verdade, e trazê-la para esta tela aqui, foi isso: pegar uns lápis para desacinzentar um pouco a alma e colorir a vida feito uma aquarela bastante brasileira.

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