Crônica de uma crise anunciada

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasIgrejas, terreiros de macumba, mesquitas, sinagogas, torcidas organizadas, clube de adoradores de vinho, comandos criminosos, sociedades secretas, máfias, grupos dos churrascos de esquina, turma da pelada semanal de veteranos, fanáticos por seriados de TV, membros do Estado Islâmico e o escambau, estabelecem laços de pertencimento, rede de sociabilidade, comunidade de afetos, senso de coletividade, sensação de proteção social, sentido de mundo, etc. É assim também, criando laços entre os seus, que funciona a Igreja Universal do Reino de Deus, a instituição religiosa a qual pertence o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.

É claro que devemos fugir do lugar-comum de falar em evangélicos como um grupo homogêneo (é ótimo que circulem textos combatendo essa estreiteza). Isso é como singularizar a ideia de África: encobre, para ficarmos apenas no que é mais simples, diferenças teológicas, percepções diversas da Bíblia, maneiras distintas de se encarar temas sociais relevantes (direito das minorias, aborto, educação laica ou religiosa, etc.).

Aí surge um ponto fundamental: na disputa pelo mercado da fé, e na construção de solidariedade e pertencimento entre seus membros, a IURD adota como uma de suas estratégias fundamentais exatamente a destruição de outros laços de pertencimento, a partir de uma visão binária entre o bem e o mal. Quando escreveu “Orixás, Caboclos e Guias”, o livro que fundamenta a visão da IURD sobre as religiosidades brasileiras de matriz africana e indígena, o Bispo Macedo fundamentou a doutrina de que essas religiosidades, e os saberes a elas vinculados, são manifestações satânicas. É uma doutrina que a IURD abraça até hoje em seus cultos.

Macedo defende no livro que diversos vícios, doenças, brigas e tragédias são originários do culto a espiritualidades da umbanda e do candomblé. Diz ainda, literalmente, que as “seitas demoníacas” vindas da África são as grandes responsáveis pelas mazelas de Brasil e pelo problema da dependência química entre seus membros. A teologia da IURD, portanto, tem como um de seus alicerces a ideia de cruzada contra as práticas culturais e religiosas vinculadas às crenças de origem africana, contrapondo a elas – que gerariam desgraças entre seus praticantes – uma teologia da prosperidade fundamentada na ideia da felicidade terrena.

Desconsiderar isso em ponderações sobre as sociabilidades que a IURD engendra entre seus membros é, no mínimo, complicado. Há uma instância de sociabilidade que se estabelece, portanto, pela desqualificação de outras formas de sociabilidade e saberes. Ela é, inclusive, racista, já que opera no campo simbólico da depreciação das práticas e dos saberes não cristãos.

Constatar um lado perverso da rede de sociabilidades que a IURD cria, por outro lado, não pode significar a demonização dos seguidores da igreja (para usar uma ideia da própria igreja) ou a generalização da ideia de que seus fiéis são ignorantes desprovidos de tino para perceber o mundo. A IURD conseguiu criar laços de pertencimento entre seus membros a partir de uma rede de assistência; fato evidente e até mesmo louvável em certo sentido.

Não há como desconsiderar, todavia, que esta construção de sociabilidade se fundamenta em pontos positivos, mas também no ódio às diferenças, no reacionarismo mais tacanho e no racismo simbólico expresso na satanização de saberes afro-brasileiros. Nem toda construção de sociabilidade é apenas positiva, e isso é tão óbvio que me parece constrangedor ressaltar.

No caso da IURD, o pertencimento pelo afeto (entre seus pares) e pela desqualificação do outro (os que não são seus pares) pode gerar fundamentalismo, destruição de terreiros, chute em santa, preconceito contra minorias, políticas públicas retrógradas, ameaças ao caráter laico do estado, cruzada moral e, em longo prazo, um Brasil fundamentalista e monocromático.

Diante destas constatações – que tantas vezes fiz – digam-me lá qual é a surpresa que alguns têm em relação ao novo discurso do prefeito do Rio de Janeiro, criando uma dicotomia entre o carnaval das escolas de samba e as creches de atendimento às crianças?

O imediatismo da adesão de várias (não foram todas, é bom lembrar) escolas de samba ao candidato da Igreja Universal do Reino de Deus. demonstra apenas que os dirigentes de escolas de samba não entendem o peso simbólico que as agremiações têm – ou tiveram – na construção de sociabilidades entre a população afrodescendente carioca.

De todo este imbróglio, destaca-se para mim uma certeza que, até então, eu apenas intuíra: parte dos dirigentes do carnaval do Rio de Janeiro, e mais particularmente de algumas escolas de samba, não fazem ideia do que é o neopentecostalismo excludente da IURD e como isso pode interferir nas festas de rua. E o mais chocante: estes dirigentes que cantaram “pega no ganzê” com o bispo não fazem a mais vaga ideia do que é uma escola de samba, de onde vieram os saberes do samba e o que eles significam para a cultura do Rio de Janeiro e do Brasil.

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