Em busca da terceira margem

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasCidades são territórios em disputa, e sobre isso já escrevi algumas vezes. Não tenho dúvidas de que, nesta disputa, prevaleceu no Rio de Janeiro dos últimos anos a lógica de se conceber a cidade como uma empresa.

A cidade-empresa, grosso modo, é aquela preparada para gerar lucro e prioritariamente pensada do ponto de vista urbano para facilitar a circulação de mercadorias. Ela disputa, com outras cidades com o mesmo perfil, investimentos de grandes corporações, turistas e eventos. A Copa de Mundo e as Olimpíadas consagraram esse modelo no Rio de Janeiro, a partir da união entre poder público, grupos oligárquicos, grandes escritórios de advocacia, restos do capital industrial, setores envolvidos na atividade turística, etc.

As escolas de samba, ao contrário do que se imagina, perderam força e poder de negociação em médio prazo nesta cidade-empresa por uma razão evidente: ao contrário do futebol e dos jogos olímpicos, desfiles de escolas de samba têm limitações para se inserir nesta lógica.

Um turista sempre saberá o que é um gol, mas terá dificuldades de conhecer alguns códigos de fundamento de uma agremiação carnavalesca (características de baterias, dança da porta-bandeira, coreografia da passista, andamento adequado de um samba-enredo, etc.).

Escolas de samba são – em suas origens – instituições comunitárias de construção, dinamização e redefinição de laços associativos e comunitários. Um desfile de escola de samba tem particularidades incompreensíveis para aqueles que não têm qualquer laço de pertencimento com estas vivencias e seus rituais.

As escolas de samba, neste sentido, ao tentarem se legitimar como protagonistas de um evento prioritariamente turístico numa cidade-empresa, precisaram se tornar minimamente compreensíveis para turistas (e aí se justificam colocar um show de acrobatas de Las Vegas numa comissão de frente, criar pirotecnias diversas, lançar um astronauta pelo sambódromo, etc.).

Em virtude desta tendência de inserção na lógica da cidade como empreendimento turístico, os fundamentos que forjaram a aventura civilizatória das agremiações perdeu o protagonismo.

Outro dado relevante neste processo é a adequação dos desfiles à estrutura de um espetáculo televisivo. Para a televisão, interessa adequar as escolas de samba na linha de show de entretenimento, visando contemplar um público que, a rigor, não dá a menor pelota para os desfiles. O que atrai este público é a mistura entre espetáculo visual grandioso e a presença de celebridades midiáticas nas agremiações.

A chegada de Marcelo Crivella à prefeitura adicionou dados novos neste panorama: o avanço evangélico entre as camadas populares da cidade, a cruzada moral no campo das subjetividades contra manifestações culturais afro-brasileiras, a crise generalizada no país (que alimenta o discurso rasteiro de que não se justifica estimular o carnaval em tempos difíceis) e a sensação de esgotamento daquele modelo de cidade-empresa que vigorou nos imaginários nos últimos anos.

Minha suspeita é a de que os movimentos do prefeito neste tabuleiro apontam em duas direções: falam com a base mais reacionária do eleitorado, e com um contingente específico de evangélicos que não pertencem a IURD, e apontam para a entrega completa do carnaval para a iniciativa privada e o mercado, consolidando o modelo de entretenimento, esvaziando a faceta cultural das agremiações e atendendo a uma fatia do empresariado interessada em controlar o negócio do carnaval na avenida e nas ruas. Este discurso ganha mais legitimidade diante da constatação da falência da Liesa como gestora do carnaval.

Neste imbróglio, o mais complicado é manter os fundamentos básicos que fizeram das escolas de samba as protagonistas da construção de laços de sociabilidade em suas comunidades. O próprio perfil do folião mudou bastante, com o advento de redes sociais, de oficinas de samba para um público de classe média e similares.
As escolas precisam, sem saudosismo, se voltar mais para aqueles que – alijados das quadras e do sambódromo pela lógica exorbitante dos preços e pelo conluio entre agências de turismo, ligas, etc. – disputam sofregamente um espaço nas arquibancadas precariamente construídas na armação do canal do mangue. Como fazer isso e, ao mesmo tempo, atender as demandas da indústria do turismo, é o X do problema.

A sobrevivência das escolas de samba depende da estruturação de um espetáculo que priorize quem ama escola de samba, como espectador e componente. Precisa, por exemplo, da abertura das quadras para eventos variados e cotidianos – inclusive de samba – que permitam a formação de público e fortaleçam elos entre os frequentadores e as agremiações. Precisa do reconhecimento das quadras como equipamentos culturais de ponta na cidade.

Não sei se existe volta neste caminho. Na encruzilhada entre o esvaziamento pelo proselitismo religioso e a cobiça da indústria do entretenimento ligeiro, a terceira margem do rio, aquela ousada pelos voos da imaginação e da coragem, parece difícil de ser alcançada pelas agremiações. Só ela, todavia, me parece ser capaz de salvar as escolas de samba da morte anunciada entre o exorcista e o empresário de shows.

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