Eu vi. E agora não desgosto mais

ANDERSON BALTAR

showzezeelucianonaimperatrizSem mais delongas, digo logo: nunca gostei de música sertaneja. Desde sempre, achava que isso era coisa de caipira, modismo insuflado pela mídia paulista e que nunca deveria ter chegado ao Rio de Janeiro. Sim, em certos momentos sou acometido de um bairrismo que deixaria muito gaúcho enciumado. No início da década de 90, quando surgiu a primeira grande onda do sertanejo, eu passei ao largo. Obviamente, não havia como ignorar a existência dos ídolos, até porque a TV e as rádios bombardeavam suas músicas. Mudava de estação imediatamente. Se um vizinho ouvisse um disco, colocava o meu num volume que o suplantasse.

Com o passar dos tempos, acostumei-me com a realidade de que existe uma expressiva parte da população do país que gosta desse estilo musical. Continuei passando ao largo, mas aceitei melhor. A gente vai amadurecendo, os primeiros fios de cabelo branco vão surgindo, os efeitos da terapia são mais nítidos. Começamos a perceber que o mundo não é o que nós queremos que seja e, sim, o que é possível depreendermos para vivermos melhor. Aos poucos, aprendemos, nem que seja na marra, a conviver com as diferenças e respeitá-las. Uma prova foi ter assistido “Dois filhos de Francisco” despido de preconceitos. E mais, ter gostado do filme e me emocionado com a trajetória de Zezé Di Camargo e Luciano exibida na tela.

Desta forma, quando a Imperatriz Leopoldinense anunciou que a dupla seria o seu enredo para o Carnaval 2016, eu me senti dividido. Um lado, mais maduro e ponderado, reconhecia nos cantores a relevância necessária para ser tema de uma escola. São famosos, têm história para contar e são ídolos populares. Não são os meus ídolos, mas são referência para milhões de pessoas do Oiapoque ao Chuí. Sempre fui defensor do enredo nacional e sei reconhecer que o interior de Goiás não é o Brasil que minha zona de conforto reconhece, mas que ele é tão representativo e válido quanto a Bahia ou o Rio de Janeiro, tão retratados por nossas escolas de samba.

Outro lado, mais tradicionalista, estranhou a escolha da Imperatriz. Eu sou meio chato com esse papo de preservação da identidade de uma agremiação. A escola de Ramos marcou época por ser a primeira a possuir um Departamento Cultural, por trazer personagens históricos pouco enfocados e por ter dado um banho de sofisticação à folia com os enredos e desfiles de Rosa Magalhães. Por isso, eu não conseguia entender como Zezé Di Camargo e Luciano subiriam a ladeira da Professor Lacê e propiciariam um bom desfile.

Fui à coletiva de lançamento do enredo e saí com uma ótima impressão. Zezé e Luciano estavam felizes, honrados e, mais do que tudo, conscientes da responsabilidade. Falavam com seriedade, respeito e carinho à bandeira da Imperatriz. Estava muito claro que, para eles, aquilo não era um oba-oba, não era apenas mais uma oportunidade para sair nas revistas de fofoca. Não. Eles estavam imbuídos da importância da trajetória da escola e sabiam que seriam fundamentais para o sucesso da empreitada. Estavam dispostos a emprestar sua credibilidade ao projeto de carnaval.

A sinopse foi lançada e os (ótimos) sambas, divulgados. Nunca vou me esquecer da emoção ao ouvir, ainda na quadra, no dia da inscrição, o samba da parceria de Zé Katimba. Estava subindo os áudios pro site da Rádio Arquibancada e, ao mesmo tempo, avisava aos amigos pelo WhatsApp: “ouça esse samba!”. Na final, em que a obra chegou como franca favorita, vi a alegria e o compromisso da dupla homenageada. No camarote da presidência, eles cantavam todos os finalistas, com as letras nas mãos, dispostos a participar de cada milésimo de segundo daquele momento mágico. Naquele mesmo dia, eles prometeram fazer um show gratuito na quadra. E eu disse ao microfone da rádio: eu vou!

E estive na noite dessa terça-feira, 22 de dezembro de 2015, no delicioso terreiro da Imperatriz. Cheguei de coração aberto, disposto a aproveitar tudo que a noite poderia me oferecer. Antes do show, entrevistei Luciano e senti a alegria e ansiedade que ele tinha em subir ao palco. Não era um espetáculo qualquer em sua carreira. Era na quadra da escola que resolveu homenagear aqueles rapazes do interior, que jamais sonhavam sequer em conhecer o Rio de Janeiro. Quanto mais, desfilar em uma escola de samba.

Me posicionei em um camarote frontal para ver o show. Muito bem produzido, com ótimos músicos e cenografia de primeira. À medida que as músicas iam sendo cantadas, eu reconhecia algumas, murmurava os refrães e batia palmas ao final dos números. Quando vi, estava totalmente seduzido. Mesmo sem conhecer as letras, meu corpo já balançava ao ritmo das canções. As palmas já eram mais enfáticas.

Quando “No dia em que saí de casa” foi entoada, não consegui me conter. Chorei. Lembrei do filme, que tanto havia me cativado. Pensei na luta dos cantores, que saíram dos estratos mais humildes da população, superaram tantas dificuldades e hoje desfrutam do sucesso. Pensei no quanto havia sido preconceituoso em tantos momentos de minha vida. Refleti sobre o quanto as pessoas merecem ser respeitadas por suas opiniões, posições e, sobretudo, gostos. Não tive como não deixar de pensar o quanto estamos vivendo imersos na mais profunda intolerância e de como precisamos abrir nossos corações e mentes para procurarmos viver da melhor forma possível.

Sim, a Imperatriz Leopoldinense, esse gigante do Carnaval, que já me proporcionou momentos fantásticos em sua quadra e na Avenida, conseguiu me emocionar de uma forma diferente. Não foi apenas com seus sambas fantásticos, nem com sua bateria pulsante. Foi com a lição de coragem, desprendimento e tolerância. De abrir as portas do samba para o sertanejo. De ir contra os preconceituosos e os puristas démodés. E, no meu caso, de fazer mais uma barreira se romper em meu coração.

Após o show, entrevistei Zezé Di Camargo. Ao final do papo, o abracei e falei grande parte do que disse acima. Ele abriu um sorriso e falou: “valeu a pena”. E valeu mesmo. O samba e o sertanejo são músicas feitas pelo e para o povo. Não interessa se esse povo fala com o “s” chiado ou com o “r” aberto. Somos todos irmãos, companheiros dessa experiência única de formar uma nação com realidades tão diversas em um país do tamanho de um continente. Somos todos brasileiros, caipiras, piraporas.

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