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28
julho
2016

Gabriel da Muda, do samba, do Rio

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoUma das formas de falar dele é assim: Gabriel da Muda, 30 anos, músico profissional desde os 16, um dos fundadores de duas das rodas de samba – na verdade, movimentos de resistência cultural – mais importantes do Rio e do Brasil, o Samba do Trabalhador e o Samba da Ouvidor; tem uma voz bonita de doer e uma memória prodigiosa para cantar sambas de tempos idos, esquecidos ou desconhecidos; participou de vários discos e em 2010 lançou o seu, só com músicas inéditas, algumas autorais; ainda neste ano grava, com os companheiros da Ouvidor, o primeiro CD da roda que desde junho também bate ponto todo mês no Circo Voador (a próxima é no sábado 6 de agosto).

– O Samba da Ouvidor era uma turma de amigos que virou uma roda de samba. E o Samba do Trabalhador, um grupo de músicos que se tornaram amigos. Esses dois lados são muito bacanas – ele define.

Pronto. Estaria escrita a coluna fosse eu um desonesto papagaio a repetir o Google. Ou se não prestasse atenção ao que um dia Hermínio Bello de Carvalho soprou como letra para a melodia de Paulinho da Viola em “Sei lá, Mangueira”: “A vida não é só isso que se vê. É um pouco mais”. Então, o que eu quero mesmo dizer é um pouco mais.

No dia 30 de maio de 2005, Gabriel Assumpção Cavalcante tinha 19 anos e passaria a tarde de folga jogando sinuca. Foi quando um telefonema do cantor Luciano Macedo o fez mudar de ideia. Naquela segunda-feira, o cantor e compositor Moacyr Luz reuniria alguns músicos para tocar, cantar sambas e comer uma costela com batata no clube Renascença, no Andaraí. O encontro despretensioso virou o Samba do Trabalhador e o resto é História.

– Eu jogava muita sinuca na Pereira Nunes e no Belo Horizonte, que é um salão de malandragem tradicional na esquina das ruas Barão de Mesquita e Uruguai. Ia pra lá quando o Luciano me ligou. Tocava com ele na Lapa e em outros lugares e aceitei na hora – relembrava, quando nos encontramos no Bar Brasil há duas semanas, aquele dia que há 11 anos pareceu banal.

Pedimos mais chopes enquanto não chegava a hora de mais uma apresentação do Samba da Ouvidor no Circo, tendo Monarco como convidado:

– O Moacyr Luz eu já conhecia desde antes. A gente se esbarrava sempre no “Nem Muda Nem Sai de Cima” (bloco de Carnaval da Tijuca). Cheguei no Renascença e ele disse: “Senta aí, vamos tocar”. E no dia seguinte já me ligou para “firmar essa costela com batata toda segunda-feira”. Estamos lá até hoje.

Em 2007, Gabriel começou o Samba da Ouvidor, no meio da rua, no Centro Histórico do Rio. De lá para cá, o couro come aos sábados, mas sem periodicidade fixa. Se chover não tem. Mas quando tem…

– Chegam a aparecer duas mil pessoas, muitas delas jovens que há alguns anos não ouviam samba nem frequentavam rodas – conta.

Muito menos uma como aquela, permanente resgate de sambas fora do “lado A” que a mídia vive a nos empurrar goela abaixo.

– Desde o começo, a ideia era cantar samba de forma livre, sem ter um dono da casa pedindo só músicas conhecidas porque precisa vender cerveja – diz.

Com o tempo, Gabriel e os outros integrantes da mesa foram ensinando aos fãs da roda obras-primas pouco conhecidas de grandes sambistas. E tome Mauro Duarte, Waldir 59, Alvaiade, Walter Rosa, Anescarzinho do Salgueiro, Mestre Fuleiro, Alberto Lonato, Zé Ramos, Walter Rosa, Gracia do Salgueiro, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Candeia, Monarco, Paulo Cesar Pinheiro e Paulinho da Viola, entre tantos outros.

Quando seria de se esperar que daí saísse o repertório do disco do grupo, Gabriel descarta a obviedade de um caminho confortável e surpreende:

– Vamos pegar sambas inéditos de um, dois ou três compositores desses que amamos e gravar o disco em estúdio – revela em primeira mão para a Rádio Arquibancada.

Já o segundo disco solo, que deverá gravar no começo do ano que vem, só terá composições dele e de amigos:

– Tenho algumas coisas prontas, mas ainda não fechei o repertório.

Repertório que pode não ter apenas sambas. Ele já fez shows pegando emprestadas outras de suas referências. Além da música brasileira, deixa-se encantar pelo jazz, pela música de Cuba, de Cabo Verde e pelo fado.

– Considero a (fadista portuguesa) Carminho a maior cantora do mundo na atualidade. Fico vendo essa mulher cantar e não acredito, é sentimento, técnica, agudo, grave, extensão de voz, é tudo – elogia.

Gabriel não costuma fazer concessões. O que é diferente de respeitar estilos de que não gosta.

– O samba me ensinou a respeitar. Você pode não gostar da obra ou do estilo de tal compositor, mas tem a obrigação de respeitá-lo. O sambista tem muito esse respeito pelo outro, é muito bonito e levo isso para a minha vida.

Pergunto sobre o futuro.

– Eu me vejo fora do Brasil, vivendo de música. Quero ver um dia as pessoas consumindo a minha música lá fora. Vou levar o meu cavaquinho e fazer uma mistura boa por lá – planeja.

Pedimos a conta no centenário bar da Lapa e, num rápido devaneio, chego a “ouvir” assim: “A minha vida é um cata-vento / Que começou a girar / Quando o samba veio me buscar”, samba de Moacyr Luz e Roberto Didio que ele gravou em 2010. Saio pela noite do bairro boêmio com a firme impressão de que esses versos continuarão girando o cata-vento na direção certa e emoldurando o talento e a trajetória de Gabriel da Muda, da música, do Rio, do mundo.

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