Misailidis, sobre o enredo da Beija-Flor: “Vivemos em uma sociedade cheia de monstros”

ANDERSON BALTAR

Coréografo consagrado do Carnaval carioca, Marcelo Misailidis encara um novo desafio na Sapucaí em 2018: além de comandar a comissão de frente da Beija-Flor, ele é o autor do enredo e com participação decisiva na elaboração e execução do processo de Carnaval da escola de Nilópolis. Nesta entrevista exclusiva à RÁDIO ARQUIBANCADA, ele traz mais detalhes do que a azul e branca apresentará já na manhã de terça-feira de folia.

Marcelo, me conte como surgiu a ideia do enredo – eu sei que você foi quem trouxe essa proposta -, a ligação com o personagem do Frankstein… de onde te veio esse estalo?

Quando o Carnaval do ano passado terminou, conversando com o Gabriel David (filho do presidente de honra, Anísio Abraão David), soube que o Anísio estava preocupado em como renovar a plateia dos desfiles de escolas de samba, porque a juventude estava indo para a Sapucaí, mas não assistia aos desfiles. Os jovens ficam dentro dos camarotes, nos atrativos, que eram mais interessantes do que o que acontecia dentro da avenida. As pessoas chegam na varanda e só veem um pouco, exceto as que estão interessadas especificamente numa escola ou outra. As pessoas não ficam presentes. Percebemos que é necessário chamar o público jovem pro samba. O público apaixonado por samba já tem uma certa idade e, se não renovamos o público, a tendência é que o Carnaval acabe morrendo com a nossa geração. Nesse intuito, observando essa questão de que as comissões de frente geravam sempre uma expectativa no desfile, ele me procurou e me perguntou o que poderia ser feito sobre o assunto. Eu fiquei de pensar e levar uma proposta para ele. Então, pensei no que poderia ser feito no sentido de tentar valorizar o espetáculo como um todo. E acho que uma das questões que eram importantes para isso é ter um bom argumento, um bom tema sobre o que falar e algo que tenha a ver com o que as pessoas estão vivendo hoje. E, pesquisando, observei a questão da obra da Mary Shelley, Frankenstein, o moderno Prometeu, que é uma obra que, embora algumas pessoas não conheçam, entendem do que se trata. Todo mundo tem essa ideia de que é uma obra de terror e tem essa ideia quase que no inconsciente coletivo, essa questão do monstro. Eu percebi que, pesquisando a fundo a obra, ela tem os argumentos de tudo o que está acontecendo no mundo contemporâneo. Hoje em dia, o cidadão comum tem medo da sua cidade, você tem medo de sair às ruas por medo da violência, vivemos um clima de insegurança constante, não só na área de segurança, mas de saúde e educação… E começamos a observar que vivemos uma sociedade cheia de monstros. E quem são os monstros? Então, a abordagem dessa obra tem toda uma ancoragem num drama extremamente atual, que é o descaso e abandono que estamos vivendo no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro: uma crise de confiança total.

Foi a primeira vez que você se deparou com o desafio de criar o argumento de um enredo?

Eu trabalho a trinta anos como artista, como encenador no Teatro Municipal, em diversos espetáculos de cunho diferente. O Carnaval também é um espetáculo de uma proporção maior, é claro, mas com uma história a ser contada.

O Joãosinho Trinta que dizia que o Carnaval é uma ópera a céu aberto.

Então, especificamente, isso é uma coisa que eu domino: o universo da ópera, o universo do espetáculo. O Joãosinho também saiu do Theatro Municipal. Então eu acho que você juntar o erudito com o popular sempre foi um flerte que funcionou muito bem. Atualizar temas universais, grandes obras, para a cultura popular, adaptando e traduzindo numa linguagem mais simples. O que nós estamos fazendo com o Frankenstein é criar o espelhamento do argumento central da obra para traduzir nas mazelas que vivemos hoje em dia. E essas mazelas estão ancoradas nessa questão da ambição – que é um arquétipo do Frankenstein -, há o  abandono – que fala da criatura que é abandonada e que é considerada um monstro, mas na verdade é uma vítima do seu criador -, e a intolerância, que é o conflito entre estes dois personagens, o criador e a criatura, e que gera todo o conflito. Essa é a base estrutural em que surge o enredo. Tudo isso transposto para a contemporaneidade.

E a obra faz 200 anos agora.

Sim, em janeiro de 2018. Ou seja, é o mote perfeito.

Me parece que fazer um enredo sobre as questões políticas e mazelas populares seria algo relativamente simples. A grande sacada é justamente…

A amarração com uma obra que fala dos arquétipos humanos com mais propriedade. Por isso, a obra tem a importância que tem, porque traduz pilares clássicos com comportamento humano.

E da relação do criador com a criatura que é uma relação que nem sempre é uma relação tranquila. Nem sempre nós ficamos satisfeitos com o que criamos.

Na verdade, se analisamos quem é o criador e a criatura, esses papéis não são claros. Muitas vezes nós mesmos adotamos a postura do criador que abandona as coisas à própria sorte. Um exemplo disso são as questões ecológicas. A população como um todo ainda não tem consciência que jogando um copo descartável, uma garrafa, um canudo, você cria uma poluição que  é um monstro que vai se voltar contra você mesmo.

Tem a própria questão do voto, dos políticos.

Sim, votar errado é entregar o destino à própria sorte. Então a partir do momento em que não assumimos as responsabilidades, assumimos o papel do criador. Temos a mania de nos sentirmos sempre vitimizados, abandonados… Parcialmente, isso acontece, mas também há os momentos em que estamos adotando este mesmo papel daquele que é responsável pelo abandono. Esse é um assunto que evoca uma certa reflexão.

E, em meio a tudo isso, ainda surge essa polêmica com a prefeitura, não saia a verba… Foi um ingrediente a mais?

As questões políticas em geral também perpassam a ideia dos arquétipos de criadores e criaturas. Obviamente que na política, muitos se elegem e vão cuidar apenas dos seus interesses, deixam que o povo se vire e todas aquelas promessas caem no esquecimento. Então é obvio que muitas questões se originam nas questões políticas. Mas este enredo é tão amplo que está em diversos quadros da sociedade, não só na política, mas em diversas outras situações podemos identificar com clareza a questão desses seres cheios de ambição que acabam por não cuidar do que deveriam.

Então esse é um tema que pode chamar a atenção das pessoas, inclusive daquelas que não estão se interessando pelo Carnaval?

O interessante é que haja uma amarração de argumento consistente, embasada na obra de Frankenstein, e depois todo esse espelhamento que facilita a questão da leitura e da explanação desse argumento da obra nas questões que vivemos. E, a partir disso, vamos tentar dramatizar as situações de cada arquétipo que contempla a obra.

Como será a setorização do desfile?

O primeiro setor é o que trata do argumento da obra. Nele nós introduzimos o personagem e a obra de Frankenstein. Ele trabalha com essas questões, com a história em si mesma, para que as pessoas que não conhecem a obra tenham uma introdução ao assunto. Quem é Frankenstein? Ele não é um monstro, ele é o Dr. Frankenstein, aquele que criou o monstro.  Nós mostramos os conceitos como eles estão no livro da Mary Shelley.

O segundo setor é aquele em que falamos de ambição, que são as características do Dr. Frankenstein, o terceiro fala do abandono, das características da criatura e o quarto fala da intolerância, que é o conflito entre dos dois personagens centrais. E o último é a redenção, que é o como a obra se encerra e como a BF sinaliza uma nova possibilidade, uma esperança baseada no trabalho social que a escola faz.

É a primeira vez que você vai desfilar com um enredo pensado por você. No que isso influi no seu trabalho? Você pensou logo no que seria a comissão de frente ou pensou o enredo de uma forma geral?

As coisas não têm regra. Às vezes você se depara com uma fronteira nova. Mesmo que se faça cem vezes um espetáculo, você até tem noção de como começar, ou como ele vai se amarrar, mas ele acaba escolhendo seus caminhos. Algumas coisas se destacam mais ou menos, isso é natural. O importante é manter os canais abertos para ver como ele pode ser potencializado, onde a cena pode ganhar mais ou menos importância, uma solução estética melhor. Mas é obvio que ter um domínio do texto todo faz com que você esteja mais preciso no momento de conduzir a narrativa. Mas, por outro lado, você fica refém de você mesmo, das suas exigências, das suas pressões. Por exemplo, eu não tenho de quem reclamar, eu tenho que reclamar comigo mesmo. É legal, por outro lado, quando se está trabalhando com outro artista, em que você faz o enredo e ele pensa a concepção, e talvez essa pessoa pensasse a comissão de frente de outro modo, diferente de mim, com outro enfoque. Eu acho que o grande barato do Carnaval hoje em dia é o acúmulo de cabeças, de gente pensando, porque a riqueza está nisso: você depende de um compositor que faça um bom samba, depende da bateria que faça um arranjo que fique bonito, há muitas interfaces em muitos setores… Há os que trabalham com acabamento, os aderecistas, pintores, todos eles trazem sua contribuição para o espetáculo. Às vezes não há visibilidade, mas são pessoas que definem muitas coisas.

Que linha você vai adotar na comissão de frente? Ela vai contar o enredo todo ou vai pincelar somente um aspecto dele?

Ela é especifica do setor, não dá uma abordagem geral. Introduz a abertura do enredo. Ela é bem focada em termos cronológicos.

Foto: Eduardo Hollanda

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