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18
novembro
2016

No tempo de Paulinho

EDUARDO CARVALHO

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A primeira vez em que vi Paulinho da Viola pessoalmente foi no começo dos anos 1980. Eu devia ter sete para oito anos e, mãos dadas com a mãe, fazia o trajeto entre o apartamento onde passávamos as férias, na Rua Tereza Guimarães, e a estação do metrô de Botafogo.

Já o conhecia havia muito, dos vinis que tínhamos em casa e da televisão, e quando reparei num sujeito moreno, agachado, lavando um fusca (acho que branco) na calçada da Mena Barreto, venci a timidez que já então me acompanhava e soltei um meio-grito, sabe como é?, aquele que pula sem muita força mas que dá conta de alcançar o destinatário:

– Paulinho da Viooola!

Ainda esfregando a lataria do automóvel, ele se virou em minha direção e, sorrindo, cumprimentou-me com a cabeça. Atônitos, eu e a mãe seguimos no mesmo passo e não olhamos mais para trás.

Até hoje, sempre que vou a um show dele ou quando ouço a sua música – trilha sonora da minha vida há quatro décadas –, é daquela imagem que me lembro: Paulinho da Viola lavando o seu carro na calçada da Mena Barreto (provavelmente, em frente ao lugar onde morava) e sorrindo em resposta ao reconhecimento do seu pequeno admirador. Na última quarta-feira, trinta e poucos anos depois, andei de volta pelo velho bairro atrás desse tempo, de um tempo, ou quem sabe do tempo de Paulinho, não importa em que tempo seja.

Tentei em vão, descendo a Pinheiro Guimarães, ouvir os ecos do moleque que jogava botão com jogadores feitos de coco e cuja bola era de meia, rolando naquela mesmíssima rua feita campo de futebol. Agucei os ouvidos para ver se captava os acordes que o menino Paulo César Batista de Faria escutava na sala de casa, num dos ensaios do pai, César Faria, violonista do conjunto Época de Ouro, quando tocava ali, na frente do garoto, com gênios como Jacob do Bandolim. Não deu.

Mas eu tinha enfiado na cabeça que hoje falaria dele. Nessa tentativa, passaria a tarde toda em Botafogo, suando a camisa colorida que cobria minha dor e gastando a sola do sapatênis em busca de alguma pista, de qualquer coisa que trouxesse para mais perto a presença do meu ídolo.

Dizer que ele, nas horas vagas, continua fumando os seus charutos (em cujas caixas, depois de vazias, guarda pregos e parafusos), trabalha com madeira e conserta objetos com as ferramentas – algumas centenárias – que tem em casa, peralá, não vale. Continua sendo verdade, apurei, mas soa como chute de cronista sem assunto.

Então, cheguei na esquina da General Polidoro e, antes de decidir o meu caminho, mesmo renegando com força o repórter que um dia tentei ser (não deu, não deu), saquei uns truques do bolso da bermuda e comecei a encontrá-lo. Primeiro, tratei de confirmar o que já sabia: Paulinho, fora dos palcos e dos estúdios, continua o mesmo. Cultiva, acaricia suas paixões com a mesma elegância e discrição com que compõe, toca, canta e leva a vida.

Com a alma acalentada por essa informação, dobrei na Real Grandeza e, boquiaberto, descobri que Paulinho tem andado por ali. Naquele dia mesmo, algumas horas à frente, ele daria o ar da graça. Mais precisamente no número 170, no estúdio onde ensaia toda vez que vai fazer um show. Os músicos que o acompanham já sabem: véspera de apresentação, dia de ensaiar de novo. Havia sido assim, eu soube, uma semana antes, quando ele se preparou para um espetáculo na Praça Mauá, e também naquela quarta, quando treinaria para um show que faria na sexta, em Curitiba.

“O que mais? O que mais?”, eu pensava. Que ele completou 74 anos no último dia 12 todo mundo sabe, sua vida e sua obra já são domínio público – coisas do mundo, minha Nega. Aí, ao pegar a Voluntários da Pátria consegui checar uma singela informação que me havia chegado semanas antes: quase toda noite, inclusive depois dos ensaios, Paulinho continua jogando sinuca com a rapaziada. Não espalha, mas ele bate ponto nas mesas de bilhar do velho Clube Olímpico, na Pompeu Loureiro, em Copacabana.

Caramba! Perco a entrada do metrô e, por alguns instantes, meus delírios me fazem enxergar mesas com buracos, verdes carpetes e bolas lustrosas e coloridas rolando sobre eles, luminárias baixas sugando a fumaça do ambiente. Ainda: saindo de uma vitrola num canto do salão, sambas de Paulinho, Casquinha, Candeia, Donga, Ismael Silva, Noel Rosa, Zé Kéti, Pixinguinha, Monarco, Wilson Batista, Monsueto, Argemiro, Cartola, Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues… Recobro a consciência quando já estou saindo do Horti Fruti para cruzar a Praça Mauro Duarte e me dou conta de que esse lugar que acabo de idealizar é um snooker bar, um bar de sinuca que Paulinho abriu e administra com serena alegria, no tempo dele, sendo também o responsável pela seleção musical da casa. Loucura minha? Premonição? – pergunto-me.

O calor aperta, atravesso a Arnaldo Quintela e, antes de bater pino na tarde de Botafogo, tenho um fantástico devaneio. Fantástico. Pela janela de uma casa de vila na Fernandes Guimarães, quase chegando na Álvaro Ramos, enxergo Paulinho da Viola na tevê, tocando e cantando, com explícita emoção e generosidade, “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc. A música havia sido escolhida como o melhor samba nos cem anos do gênero, e coube a Paulinho cantá-la para esse Brasil tão estranho de 2016.

Embriagado por aquela visão de pura beleza, ainda chego a imaginar, lá na Muda, Aldir chorando enquanto dá um gole proibido no uísque também proibido. Entorno a primeira gelada do dia, coloco o ponto final no texto e envio para o editor a coluna, feita como fosse um samba. Um samba sobre o infinito para emoldurar, do meu jeito, a minha busca desesperada pelo Tempo da Delicadeza por onde se move, em qualquer tempo, Paulinho da Viola.

 

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