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28
abril
2017

‘No tempo em que os quintais conversavam’

EDUARDO CARVALHO

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Nos cem anos de “Carinhoso”, peço licença para deixar de lado as muitas e geniais facetas do seu autor – o compositor, instrumentista, arranjador e maestro Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha. Este 2017 marca ainda os 120 anos de nascimento de Pizindim – apelido dado por uma avó africana ou pela prima Eurídice e cujo significado seria “menino bom” –, que aos 11 anos compôs sua primeira música, o choro “Lata de Leite”.

Aproveitando as efemérides em torno do compositor de tantas obras-primas – como o maravilhoso choro “Um a Zero” – eu poderia falar também do companheiro de arte e boemia de mitos do samba, entre eles João da Baiana e Donga. Ou, quem sabe, do Pixinguinha integrante dos Oito Batutas, grupo que, de 1919 a 1922, apresentou-se com arrebatador sucesso mundo afora, em cidades como Paris e Buenos Aires.

Só que não. Deixo de lado os muitos Pixinguinhas já fartamente documentados para trazer à tona uma história, inédita, que me foi contada pelo meu muito querido amigo Dagoberto Souto Maior, jornalista dos maiores que conheci na vida. Eu lhe pedi alguns detalhes de uma história que me havia contado muitos anos atrás. E ele me enviou, sem anunciá-la como tal, uma crônica pronta. Perfeita. Bonita de doer.

Sem mais, deixo vocês com o que escreveu o Dagoberto:

“Teve época em que o Rio tinha quintais, e os quintais conversavam. Geralmente, principalmente no subúrbio, havia mais espaço. Os terrenos eram grandes. Construía-se uma casa na frente, ou no meio, e ainda sobrava muito. Era o famoso “dava fundos”. Uma casa “dava fundos” pra outra, que “dava fundos” pra outra – ou era vizinha de lado. E o espaço que sobrava era pra plantar carambola, sapoti, manga, pé de roseira, samambaia, romã e laranja.

O quintal era parte ativa da casa. Os meninos o usavam pra brincar e as mães pra lavar roupa, quarar roupa, estender roupa na corda e colocar roupa no sol pra tirar mofo. No quintal, a gente se ligava na natureza – e não esquecia nunca que ela existia. Tinha pequenos bichos, tinha rato, tinha gambá, marimbondo, tudo quanto é tipo de inseto, cachorro e gato.

Pelo quintal as famílias também falavam. Ouviam as brigas uns dos outros. Contavam pros vizinhos. Ouviam as broncas, as loucuras, os gemidos, as risadas, as piadas, as brincadeiras. Era quase que tudo uma mesma família.

Os vizinhos de rua eram do nascimento até a morte. A gente sabia de tudo que o vizinho fazia, pensava, sofria e se alegrava. Da janela da minha vó, dona Ana, Anita, Nita pros que moravam ali, ela via o quintal do vizinho, seu João, e quantos bodes ele criava. E ganhava o leite das cabras. E pedia coisas: sal, açúcar, café. Comprar era caro, só quando precisava muito. E era na venda da esquina (tinha venda, tinha aviário e tinha botequim).

Minha mãe, Neuza [Neuza Lopes Souto Maior], e minha tia, Glorinha [Glória Machado Lopes], Goinha pros vizinhos, foram criadas no quintal da Rua Felisbelo Freire, número 257, em Ramos – as duas e a irmã [Nadir], que morreu de câncer aos 15 anos. Moças ainda, seguiam a rotina dos quintais, conversando e compartilhando a vida com os vizinhos.

Deram a sorte de morar perto do Pixinguinha. Os dois quintais conversavam. Na Felisbelo Freire, a casa “dava fundos” pra casa do Pixinguinha, que era na, hoje, Rua Pixinguinha. Em Ramos, veja bem, não em Olaria. Porque quem é de Ramos faz questão de dizer que a Rua Pixinguinha é lá.

Era, a rua dele, uma rua sem saída, transversal da Custódio Nunes. Essa sim, era maior, dava pra jogar bola e tinha festa junina. A Custódio Nunes era rua de respeito. A João Silva, mais ainda. A Rua Pixinguinha, que na época tinha outro nome, bem, quase nem era, porque não tinha nem saída!

Pixinguinha morava numa casa quase escondida, cheia de árvores e de muito silêncio. E que “dava fundos” pro quintal da minha mãe. Mas ser vizinho do Pixinguinha era mais do que sorte: era uma benção. Porque ele ensaiava no quintal, e o som – imagino o que era… – chegava no quintal da casa delas, ao vivo, bem pertinho.

Ele tocava, ensaiava, repetia. Choros, valsas, sambas. Elas passavam as tardes ouvindo. Brincavam ao som das músicas. Pegavam vassouras de piaçava e dançavam, sozinhas, ouvindo. Abraçadas nas vassouras.

Isso era no fim dos anos 40, eram moças ainda. Sabiam que ele era o Pixinguinha, o grande músico. Mas não falavam com ele. Sabiam que ele era o homem que andava de pijama o dia todo. De pijama e de chinelo. Ia à venda, ao botequim e ao aviário de pijama e de chinelo. Cumprimentava todo mundo. Parava pra falar com todo mundo. De pijama e de chinelo. Sua vida, sua música, eram dele e também eram dos vizinhos. Porque vizinho era pra sempre.”

*****

Perguntei ao Dago se ele, nascido em 68, ainda chegou a ouvir o mestre tocar (Pixinguinha morreu em 73). “Não ouvi nada, infelizmente. Só as histórias”, respondeu-me. E me confessou que chora quando as relembra. Como chorei ao ler o texto do meu amigo, esse magistral relato de um tempo em que os quintais conversavam.

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