O dia em que a Portela cantou Silas de Oliveira na Sapucaí

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasImpactado com o que aconteceu na Marques de Sapucaí no Carnaval de 2013, durante o esquenta da bateria da Portela, escrevi um texto sobre o acontecido; um dos momentos mais marcantes da história dos desfiles. Reproduzo o que relatei na época para explicar depois o título deste arrazoado:

“A Portela se prepara para entrar na avenida. O enredo conta a história do bairro de Madureira. A bateria vem de Zé Pelintra, o malandro seminal. A rainha dos ritmistas, Patrícia Nery, vem de Maria Padilha. As fantasias fazem referência ao Mercadão de Madureira e suas inúmeras lojas de artigos religiosos ligados ao candomblé e a umbanda.

Desde o ensaio geral da escola, em virtude de alguns recados mandados pelo próprio malandro e pela Padilha, a bateria sabia que deveria pedir licença a Seu Zé antes de iniciar o desfile. Acontece, então, o momento único: as caixas, repiques, tamborins, surdos e agogôs param de tocar, os atabaques começam a curimba e abre-se um corredor. A rainha de bateria / Maria Padilha, inicia sua dança sensual, desprovida de pecados, sacralizadora do profano e profanadora do sagrado. Sem culpas. Os diretores de bateria sambam com a ginga sinuosa, sincopada, festeira e alforriada de Seu Zé. A bateria canta, o público canta e a madrugada canta os pontos do malandro divino, o Zé das Alagoas.

Contemplado o malandro, a bateria retoma o ritmo do samba e a Portela se prepara para entrar na avenida. Gilsinho, o puxador do samba, vez por outra assombrará a Sapucaí com a gargalhada vital do Homem da Rua. Os tambores portelenses sustentarão o samba- e a bateria sairá consagrada pelo júri oficial e pelas premiações paralelas como a melhor dos desfiles. O malandro gostou da festa e bateu tambor pelas mãos e baquetas de cada um dos ritmistas”.

Esclareço agora o título da crônica. Naquela madrugada foram cantados dois pontos de Seu Zé. O primeiro fez referência ao fato de o Pilintra ter sido catimbozeiro no Nordeste, antes de baixar no Rio na linha da malandragem: “Ô Zé, quando vem de Alagoas / Toma cuidado com o balanço da canoa / Ô Zé, faça tudo que quiser / Só não maltrate o coração dessa mulher.”

O segundo foi uma curimba ponto das mais cantadas em gira de malandro: “Se a Rádio Patrulha chegasse aqui agora/ Seria uma grande vitória/Ninguém poderia correr/ Agora eu quero ver / Quem é malandro não pode correr…”

O que pouca gente sabe é que o segundo ponto de macumba que a Portela cantou – Rádio Patrulha – é originalmente um samba do mestre Silas de Oliveira, em parceria com Marcelino Ramos, J. Dias e Luisinho, gravado em 1956 por Heleninha Costa. Sucesso no Carnaval daquele ano, o samba acabou virando curimba e foi incorporado às rodas de malandro nas umbandas e quimbandas cariocas. Coisas do tempo em que samba era macumba, macumba era samba e estamos conversados.

Vejam vocês que encruzilhada bonita: Silas de Oliveira, filho de pastor protestante, é autor de um ponto de macumba seminal. A Portela, histórica rival do Império Serrano, cantou um samba de um mestre imperiano no esquenta.

Samba e macumba são irmãos siameses que alguns insistem em separar: é com eles que a gente reinventa a vida, zomba do pecado e transforma o corpo em totem. Na ginga do malandro da Portela, no balanço dos ombros da Padilha, nos versos de Silas de Oliveira, o silêncio é preenchido e a bateria toca na cadência da curimba: eis aí nossa gargalhada zombeteira que alumia o mundo.

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