O mais político dos Carnavais

Desfile das grandes escolas de samba na Sapucaí terá a maior reunião de enredos críticos dos 86 anos de história da festa

AYDANO ANDRÉ MOTTA (publicado no projeto #colabora)

De 1932 a 2017, a coleção de 86 desfiles das escolas de samba cariocas apresenta muito mais celebração do que crítica, muito mais adesão do que oposição, muito mais exaltação do que denúncia. Assim, a maratona que começa na noite deste domingo garante um recorde – quatro das 13 escolas que vão passar na Sapucaí abordarão aspectos lamentáveis do cotidiano. Será uma festa de tocar nas feridas, numa alegria que ambiciona fazer pensar.

Para sobreviver nas frestas de uma sociedade que as criminalizou no início, e jamais se dispôs a olhá-las sem preconceito, as grifes da folia mantiveram-se, no mais das vezes, distantes da política. Mas a saga octogenária registra exceções – de todos os matizes ideológicos.

Na ditadura militar inaugurada em 1964, várias escolas encenaram celebrações ao regime, mas a conta ficou para a Beija-Flor. No triênio 1973/1975, a turma de Nilópolis saudou facetas do milagre econômico (por mais que seja doloroso lembrar, de governos populares); um deles, de 1974, ganhou a eternidade sob o enredo “Brasil do ano 2000” e o samba (de Walter de Oliveira e João Rosa) “É estrada cortando/ A mata em pleno sertão/ É petróleo jorrando/ Com afluência do chão/ Sim, chegou a hora/ Da passarela conhecer/ A ideia do artista/ Imaginando o que vai acontecer/ No Brasil do ano dois mil…”

No ocaso do autoritarismo, a Caprichosos de Pilares, em 1985, fez história na Passarela inaugurada um ano antes com “… E por falar em saudade” e o samba (de Almir Araújo, Marquinhos Lessa, Hércules Corrêa, Balinha e Carlinhos de Pilares) dos versos “Diretamente, o povo escolhia o presidente/ Se comia mais feijão,/ Vovó botava a poupança no colchão/ Hoje está tudo mudado,/ Tem muita gente no lugar errado”. O Carnaval embarcava na maré democrática.

A Beija-Flor fez a volta em sua própria história, exaltando o recém-eleito Lula em 2003, com o enredo “O povo conta a sua história: saco vazio não para em pé, a mão que faz a guerra, faz a paz”, de aguda crítica social. (O samba começa com Neguinho da Beija-Flor anunciando “Agora sim, o povo está feliz”.) Foi campeã do Carnaval – como a Vila Isabel em 2006 com “Soy loco por ti, América: a Vila canta a latinidade”, que levou escultura imensa de Hugo Chávez Sapucaí afora.

Mas no quesito crítica, nenhum Carnaval se compara ao de 2018. Conheça os quatro enredos em que o pau vai quebrar para cima de quem merece:

1 – Paraíso do Tuiuti, “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”: Desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos a partir dos 130 anos da Abolição, o tema da escola de São Cristóvão é pau puro. Bate no racismo, na reforma trabalhista e traz, no último carro, um vampiro. Adivinha quem é… Para dar ritmo nisso tudo, um samba de antologia.

2 – Mangueira, “Com dinheiro ou sem dinheiro eu brinco”: Inventora do babado, a verde e rosa transformou a crise em folia. De autoria do artista mais importante da festa – o carnavalesco Leandro Vieira –, o enredo lembra que o Carnaval sempre existiu, bem antes da era multimilionária da Sapucaí. Assim, a escola apresentará arlequins, pierrôs, colombinas, botecos, o povo de rua, os blocos, as drag queens, o baile todo para criticar quem conspira contra a festa maior. Não ligou o nome à pessoa? Não seja por isso: preste atenção na última alegoria. No alto, haverá uma bunda gigante, com celulite e a tatuagem de um coração. Bem no meio dela, estará o nome: Crivella.

3 – Portela, ““De repente de lá pra cá e dirrepente daqui pra lá”: A inteligência de Rosa Magalhães – a Professora, maior campeã em atividade na festa – parte da história dos judeus pernambucanos expulsos na invasão holandesa para construir um libelo contra a xenofobia. Uma crítica sutil a intolerância dos anos Trump.

4 – Beija-Flor, “Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu”: Ninguém será tão carnavalescamente radical como a azul e branco nilopolitana. A efeméride dos 200 anos de lançamento do romance “Frankestein”, de Mary Shelley é a metáfora inicial para a apresentação de uma sortida salada de mazelas sociais brasileiras. Corrupção, racismo, intolerâncias variadas, poluição ambiental – para terminar na vitória do Carnaval, na celebração dos 70 anos da escola. Deu num dos mais aclamados sambas da temporada

Ilustração: detalhe de carro alegórico da Mangueira (Foto de Leandro Vieira)

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