Posted On

24
novembro
2016

O “Pelo Telefone” nas narrativas do samba

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasNas narrativas sobre o samba, o mito de origem atribui ao “Pelo Telefone”, registrado em 1916 na Biblioteca Nacional por Ernesto dos Santos, o Donga, o estatuto de primeira gravação fonográfica no Brasil a ser editada como samba. A obra teria sido composta durante uma festa na casa da Tia Ciata, na Rua Visconde de Itaúna, 117.

A centralidade da casa da Tia Ciata na cultura do samba sintetiza a importância do matriarcado das tias baianas na região que se estendia da Praça Onze aos arredores da Praça Mauá; a área que Heitor dos Prazeres chamou de África em miniatura. As tias exerceram lideranças comunitárias, fundamentadas no exercício do sacerdócio religioso, e criaram redes de proteção social fundamentais para a comunidade afro-carioca. Além de Ciata, fizeram parte deste time, dentre outras, Tia Prisciliana (mãe de João da Baiana), Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Veridiana e Tia Mônica (mãe de Carmem da Xibuca e de Pendengo).

A partir deste mito de origem, a historiografia do samba mergulhou em aventuras detetivescas sobre o papel do “Pelo telefone” na canção brasileira. Sabemos, por exemplo, que antes do registro de Donga, ao contrário do que a narrativa sobre este fato estabelece como versão canônica, outras gravações já teriam sido editadas como sambas. Ary Vasconcelos, pesquisador de mão cheia, afirma que em 1911 a canção “Em casa de baiana” fora registrada como “samba de partido-alto” e que foi como “samba” que a música “A viola está magoada” foi rotulada, em 1914. Mas a discussão vai mais longe.

Em 1972, o pesquisador gaúcho Paixão Cortes encontrou o catálogo de uma gravadora, que teria funcionado entre 1913 e meados de 1914, em que nove gravações foram registradas como sambas. Outro pesquisador, Maurício Quadrio, descobriu que a pioneira Casa Edison gravou, antes de todos os registros acima citados, o repertório da revista musical “Avança”, com canções compostas pelo paulista Assis Pacheco. Uma delas foi registrada como “Um samba na Penha” e gravada por Pepa Delgado, em 1909. Se essa for a primeira gravação registrada como samba, teremos que considerar a fabulosa ironia de que o primeiro registro fonográfico do gênero disputado por baianos e cariocas pode ter sido de autoria de um paulista.

Não bastasse essa questão, outras polêmicas alimentam o enigma do “Pelo telefone”. Os mais apegados a análises estilísticas insistem que o “Pelo telefone” não seria samba, mas maxixe. Ismael Silva, bamba da turma do Estácio, gostava de lembrar-se deste fato, inserindo-se na disputa entre narrativas como o mais apto a ocupar o lugar de codificador por excelência do samba carioca.

De fato, a diferença entre o “Pelo Telefone” e os sambas fundamentados no que Carlos Sandroni chamou, no seu livro “Feitiço Decente”, de “paradigma do Estácio” é notória. Ao contrário do samba amaxixado, o samba criado pela turma de Ismael, Bide, Newton, Marçal, Brancura, Edgar e Rubens tinha andamento mais rápido e notas alongadas, para facilitar a evolução em cortejo e atender aos anseios dos blocos e primeiras escolas de samba que surgiam.
Donga, em resposta a Ismael, costumava dizer que “Se você jurar”, uma das obras primas do samba estaciano, era uma marcha. Ismael não deixava barato e afirmava que o “Pelo telefone” tinha somente um “tan tantam tan tantam”, enquanto o samba do Estácio fazia “Bumbum Paticumbum Prugurundum”.

A gravação do “Pelo telefone” também é cercada de versões. Ary Vasconcelos e Lúcio Rangel dizem que o registro original foi feito pela Banda Odeon. Donga, o pai da criança, questionou essa versão, apontando a gravação de Baiano como a primeira. Um grande imbróglio envolve também a autoria da obra. O primeiro registro omitia o nome do jornalista Mauro de Almeida, reconhecido pelos pesquisadores como o autor da letra. Almirante acusou Donga pela omissão, que atribui o fato a um problema da editora.

A edição do Jornal do Brasil de 04 de fevereiro de 1917 reproduzia uma nota do Grêmio Fala Gente, anunciando que a agremiação cantaria “o verdadeiro Pelo telefone”, e citando como autores Tia Ciata, Hilário, João da Mata e Germano. Donga entrou na polêmica, afirmando que a composição atribuída à turma da Tia Ciata tinha o mesmo motivo temático, mas com melodia distinta.

Quando se imaginou que nenhuma outra polêmica poderia cercar a obra, Almirante afirmou que Sinhô foi um dos autores da música e o cronista Vagalume, no seu “Na roda do samba”, defendeu a tese de que Donga e Mauro de Almeida fizeram algumas modificações em uma criação coletiva de vários frequentadores da casa da Tia Ciata. Mauro de Almeida admitiu em algumas ocasiões que a letra do “Pelo telefone” foi quase toda tirada de trovas populares.

O que podemos dizer diante disso? É claro que o “Pelo telefone” é um registro de relevância maior na história do samba como gênero seminal da música popular brasileira. Não se discute a importância de Donga como um dos codificadores do samba no Rio de Janeiro. O lugar que o “Pelo telefone” ocupa é o de uma gravação registrada como samba que fez enorme sucesso no carnaval de 1917. Nenhuma gravação editada anteriormente como samba, e citamos várias, chegou perto da popularidade que a música que Donga conquistou.

A definição sobre o que teria sido o primeiro samba e a polêmica da autoria do “Pelo telefone” são questões que não têm, ainda bem, resolução objetiva. Ótimas para animar mesas de bar e importantes para dar ao samba a centralidade que ele merece no panorama da cultura brasileira, elas não comportam respostas definitivas e estão longe de esgotar as possibilidades de narrativas em embate que a evolução do samba carioca apresenta.

Neste sentido, o melhor a fazer é desconsiderar a sempre suspeita objetividade dos fatos. Um caminho de reflexão interessante é aquele que busca entender como as subjetividades que envolvem os discursos sobre o “Pelo telefone” sugerem dilemas para que pensemos as articulações e desdobramentos das culturas da diáspora africana em um Brasil republicano, nas primeiras décadas do pós-abolição.

Veja Também

Artigos Relacionados

Categorias

Navegue por Assunto

Recentes

As Últimas da Arquibancada