O sábado que renova a alma

FRED SOARES

Imagine um portal de entrada para um mundo pleno de felicidade, igualdade e muita diversão. Pois então, desde que tenho 5 anos de idade, este portal tem nome e sobrenome: Sábado de Carnaval. É, assim mesmo. Em caixa alta, com pompa e circunstância. Afinal, era, como ainda é, a representação do meu encontro com aquilo que, neste mundo físico, mais se aproxima do Nirvana.

O carnaval é, por essência, um elemento purificador da alma, provoca uma sensação de libertação do sofrimento e nos motiva à transgressão que leva à paz interior. Parece até algum tipo de preceito budista. Tivesse eu nascido no Tibete, talvez houvesse um momento específico que me fizesse procurar um templo. Mas carioca que sou, meu ádito é a rua e esse dia especial é o Sábado de Carnaval.

É o primeiro dia, o princípio de tudo. É quando a rua ganha uma aura diferenciada dos outros 361 do ano. Uma certeza que começou ali, por volta de 1979, quando meu saudoso Tio Arnaldo me levava à velha Rio Branco para conviver com o Cordão do Bola Preta, talvez a mais antiga representação do carnaval carioca ainda em atividade. Pensem só no encantamento daquele menino de cinco anos vendo todo aquele tipo de gente, de comportamento, de deslumbramento, de roupas e de até sem roupas. Tudo sob uma marcante trilha sonora musical, que perdura até hoje. Uma mistura de imagens, sons e sensações que são determinantes na constituição de um verdadeiro amor. E ali tudo nasceu.

Os anos se passaram. O menininho de 5 anos virou um moleque e ganhou mais um presente dos Deuses do Carnaval: a Marquês de Sapucaí. Tinha só 9 anos. No ano anterior, conheci a mística avenida e suas maravilhosas escolas de samba. Mais um momento a ser plasmado na minha mente. Em 1983, veio mais uma alegria: aquele fuzuê tudo começava mais cedo – no Sábado de Carnaval. Umas escolas de samba de tamanho menor – os blocos de enredo – apresentavam-se naquele solo sagrado. Um outro tio, o Zeca, mandou: “vamos lá, moleque?”. Lógico que sim. E lá fui eu. Ali, conheci símbolos enormes da nossa festa maior, como os Canários das Laranjeiras e a Flor da Mina do Andaraí. Aliás, esta última proporcionou o primeiro contato com o maior inimigo do carnaval: a chuva. Na hora sua apresentação, já às 10h da manhã de domingo, um dilúvio sob a cabeça que não me fez arredar pé da passarela. Uma mania, talvez, que persista até hoje. Não há intempérie que me faça abandonar a festa no meio.

O moleque virou adolescente. A batida de ponto no Bola seguia inegociável. A burocracia chutou os blocos do palco principal, que passou a ser ocupado pelas escolas de samba do chamado segundo grupo. E lá estava eu. Com chuva ou com sol. Primeiro, como folião.

Anos mais tarde, já homem barbado, a partir de 1996, no exercício da função profissional que mais me causa prazer: a de cronista carnavalesco. Nesta prática, enveredei-me numa luta que me causou certos desconfortos nas redações em que trabalhei. Às vezes por preconceito, às vezes por desconhecimento de causa, mas o fato é que entrei em muitos embates com chefes para que não olhassem com desdém para aquele dia, o Sábado de Carnaval. Boa parte do nosso público era composto por gente das comunidades que compunham aquelas escolas de samba e era extremamente injusto que ficassem carentes de informação e de opinião por uma premissa equivocada dos executivos de jornal e de rádios. Com muita lábia, teimosia e insistência, ganhei a maioria dessas quedas de braço. Tudo exclusivamente pelo carnaval. Pelo Sábado de Carnaval. Por pessoas como a Dona Marina, uma senhora que todo primeiro dia de desfiles era a primeira a chegar ali no Setor 11. Ia sempre lhe pedir a benção. Em troca, ela me oferecia uma suculenta coxa de frango, destaque do imenso farnel que ocupava um bom pedaço da arquibancada.

Já mais velho, este dia tão especial me proporcionou outro momento ímpar. Talvez o mais especial de todos: o dia em que minha falecida e querida mãe, a dona Macrina, resolveu ir aos desfiles, já às portas dos 70 anos. Fiz só uma exigência: pra ir, tem de ser a todos. A começar pelo sábado. Acordo feito e, algumas semanas depois, lá estava ela. Numa frisa do velho Setor 4. Algumas vezes, chegava pertinho, sem que ela me visse. Era um bálsamo para a alma ver os olhos marejados de emoção, o sorriso radiante, a reação sapeca do corpo. Aquela mulher, que foi simplesmente tudo na minha vida, renascia ali, alegremente, naqueles dias, para suportar as desventuras da vida normal. Numa ordem inversa do fluxo natural, primeiro o filho, depois ela, como escrevi, vivia a sensação de libertação do sofrimento e se motivava à transgressão que levava à paz interior.

De uns tempos pra cá, o Sábado de Carnaval virou Sexta. A folia da Sapucaí foi antecipada. O Bola Preta, não. Este ninguém tasca do sábado. Assim como um ritual do qual não abro mão quando o relógio bate 5h da manhã. Ponho pra tocar “Dia de Graça”, de Candeia. E deixo tomar conta da alma este trecho:

“Hoje é manhã de carnaval (há o esplendor)
As escolas vão desfilar (garbosamente)
Aquela gente de cor, com a imponência de um rei, vai pisar na passarela (salve a Portela)
Vamos esquecer os desenganos (que passamos)
Viver alegria que sonhamos (durante o ano)
Damos o nosso coração, alegria e amor a todos sem distinção de cor”.

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