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19
janeiro
2017

A passarela que foi tomada do povo

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoO início de mais uma temporada de ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí, no último fim de semana, marcou a volta das atividades no Sambódromo carioca. Esse cartão postal feito de concreto e de sonhos foi idealizado por Darcy Ribeiro, desenhado por Oscar Niemeyer e construído no primeiro ano do primeiro governo de Leonel de Moura Brizola, em 1983.

Antes do Carnaval do ano seguinte, foi inaugurado com o nome oficial de “Avenida dos Desfiles”. Depois, teve o batismo trocado para “Passarela do Samba”. E finalmente, em 18 de fevereiro de 1987, ganhou a alcunha de “Passarela Professor Darcy Ribeiro”, em definitiva e justa homenagem ao antropólogo, escritor, educador e político (como já não se fazem mais) que o concebeu.

Um dos motivos que levou Brizola a construir uma estrutura fixa para o “maior espetáculo da Terra” foi o fato de que o monta-desmonta de arquibancadas, camarotes e demais instalações levava quase seis meses por ano. Era preciso criar um equipamento permanente, grandioso e que incluísse o povo, as comunidades das escolas, os foliões verdadeiros, e não apenas artistas (de verdade ou não) e manda-chuvas de todo tipo.

Criticada por boa parte da mídia e da sociedade de então, a Passarela do Samba nasceu como um lindo projeto artístico moderno, democrático e inclusivo. Muitos recém-chegados ao Carnaval não sabem (por juventude ou falta de cultura mesmo), mas debaixo das arquibancadas funcionavam, ao longo do ano, escolas da rede pública nas quais estudavam 15 mil alunos. O Sambódromo foi concebido assim. E assim funcionou por muitos e muitos anos. Que tal?

Outro grande conceito do projeto era o da praça no fim da pista. A ideia de Darcy era criar um espaço na extremidade final da passarela, onde o desfile de cada escola culminaria com uma festa monumental – apoteótica! – e onde os foliões poderiam brincar e cantar antes de encerrar o desfile. Era a Praça da Apoteose. Genial. Mas, como se vê, nada mais “anti-espetáculo” televisivo, que conta os minutos como fosse um rali, um páreo de competição movido a dinheiro.

Aliás, o único momento em toda a história do Sambódromo em que a Praça da Apoteose chegou perto do ideal que a gerou foi na famosa “volta olímpica” da Mangueira, naquele mesmo 1984. A escola, última a desfilar, deu a volta na praça, retornando Sapucaí abaixo, em sentido contrário, e escrevendo uma das páginas mais bonitas do Carnaval em todos os tempos.

No entanto, no ano seguinte os donos da festa desconfiguraram o sonho de Darcy e Niemeyer. Entupiram boa parte da Apoteose com cadeiras de pista, transformando-a em reta de chegada e burocratizando a festa.

Por essas e outras, acredito que sempre é tempo de refletirmos a respeito do Carnaval que temos, que queremos e que poderíamos ter. Hoje, o monta-desmonta de estruturas dura, de novo, meses a fio, antes e depois da folia. Por que razão, se temos o Sambódromo de concreto lá? Ora, porque é preciso criar novas instalações, camarotes para os milionários, frisas, “áreas vip” (pausa para o vômito) para os que podem pagar muito dinheiro e se apropriar ainda mais do espetáculo que era para ser de todos.

Nunca nos esqueçamos de que o Sambódromo que saiu da cabeça, do coração e da prancheta do imenso Niemeyer previa a presença maciça do povo. E justamente onde inventaram de colocar estruturas como as citadas acima. Vejam o que escreveu o próprio Niemeyer, em 1983, na apresentação da “Avenida de Desfiles”:

“O projeto devolve ao povo o Desfile das Escolas de Samba. Para isso, os camarotes foram suspensos (…), ficando o térreo – toda a área – entregue ao povão, como se diz. Acompanha o Desfile: de um lado, seis blocos de arquibancadas separados 30 metros com o objetivo de criar as praças populares. Do outro, um grande bloco de camarotes que segue até o fim o prédio da Brahma”.

(NIEMEYER, Oscar, SUSSEKIND, J.C. A Passarela do Samba. Módulo, Rio de Janeiro, n.78, p.18. dez.1983)

“Devolve ao povo”, “entregue ao povão”, “praças populares”. Deu para entender como ficamos muito longe disso, gente boa?

Então, nós, que amamos o Carnaval, temos a obrigação de gritar contra toda a nojenta segregação criada por ricos e poderosos e mídias e que tais. E levar adiante mais uma lição do grande humanista que foi Niemeyer: “O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar”.

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