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20
setembro
2016

Pela perpetuação da paixão pela folia

ANDERSON BALTAR

anderson-baltarAconteceu comigo e creio que com você também. Estamos envolvidos até o pescoço nesta cachaça chamada Carnaval por causa do samba-enredo. Por mais fantástico que seja o espetáculo das escolas de samba, os corações são conquistados, nas mais tenras idades, pela música. Dentre as recordações mais doces de minha infância na Ilha do Governador, estão as tardes em que eu passava no meu quarto com uma vitrola portátil Grundig que ganhei de presente quando fiz cinco anos de idade. Ao contrário dos modelos em voga à época, da Philips, de matéria plástica, a minha era toda estilosa. Feita de madeira e com tampa suspensa de acrílico, permitia, desde que a mesma fosse desencaixada, a audição não apenas de compactos (será que terei de explicar aos mais jovens o que é isso?), mas também de LPs.

Sim, naqueles dias iniciais dos anos 80, grande parte dos lançamentos da música eram feitos em pequenos discos de vinil, com duas músicas de cada lado. Esses eram os famosos compactos, os quais tinha em boa quantidade – em sua maioria, de artistas infantis como As Patotinhas. Quanto aos LPs, formato mais difundido, os discos de samba-enredo eram insuperáveis em minhas tardes de audição.

Ouvia os discos e viajava olhando as capas. Via as fotos da Presidente Vargas toda iluminada nos álbuns do início dos anos 70 e tentava imaginar como seriam aqueles sambas sendo apresentados naqueles locais feericamente decorados. Uma imagem sempre me capturou é a que justamente ilustra esse artigo: a contra-capa do disco de 1976. Perdi a conta do número de vezes que olhei para esse casal de passistas que caminhava na avenida deserta. Em minha inocência, eu criei várias histórias para eles. Tentava imaginar quem eles eram, em que escola haviam desfilado, se eles estavam apenas cansados ou tristes porque o desfile tinha acabado. Voltaram para casa como? Eram namorados, amigos, casados, irmãos? Enquanto me pegava em devaneios, a maravilhosa safra de 1976 preenchia meus ouvidos e iluminava meu coração.

Apesar disso, meu disco preferido sempre foi o de 1980. Teorias para justificar, tenho várias. Talvez tenha sido o primeiro Carnaval que eu tenha acompanhado tendo noção do que era e, por isso, aprendi todos os hinos. O fato de que a safra é fantástica também é outro bom argumento. Certamente o carinho também tem razão de ser por ter sido o Carnaval em que minha União da Ilha obteve sua melhor classificação da história e com um samba que me toca profundamente o coração até hoje (“Bom, bonito e barato” é o meu preferido da tricolor insulana).

Bem rapidamente, expliquei como o samba-enredo me chamou a atenção para o Carnaval e deixou plantadas as raízes para o surgimento de uma paixão tão forte, que, certamente, foi turbinada com madrugadas em claro assistindo aos desfiles pela televisão. Até chegar o dia em que pude comprar os ingressos e, como realização máxima, trabalhar na avenida cobrindo os desfiles. Não duvide: com mais de 15 anos de imprensa carnavalesca, todo ano me emociono ao chegar na Sapucaí para trabalhar.

Você deve estar se perguntando o porquê de toda essa minha digressão. Explico afirmando que ma coisa me intriga nesses tempos de convergência digital e transmissão capenga do desfile: como um coração infantil consegue ser fisgado pelas escolas de samba?

Ouvindo samba? A experiência de conhecer os sambas-enredos mudou bastante. Os mesmos quase não tocam no rádio e as vinhetas de televisão são irrisórias. Ainda existem os CDs, mas essa tecnologia desde sempre esbarrou na falta de expressividade gráfica de seus álbuns. É incomparável a sensação de se ouvir um disco manuseando a capa do tamanho de um vinil. Por outro lado, os encartes de CDs são pouco atraentes – especialmente para crianças. Isso se consideramos que as pessoas ainda ouçam CDs com frequência. Estamos na era do MP3, da impessoalidade, da transferência de arquivos e da frieza computacional.

Como se apaixonar pelo desfile em uma transmissão televisiva tão asséptica, tão fragmentada, transformada em um sub-Vídeo Show, em que um monte de atores globais e subcelebridades se sucedem em um estúdio na dispersão enquanto a escola seguinte desfila? Como fazer alguém se interessar pela dança de um casal de mestre-sala e porta-bandeira se a mesma é cortada ao meio na edição? Como uma criança pode se encantar com uma passista se as mesmas desfilam ensanduichadas e imitando cantoras americanas? Como se emocionar com uma bateria se ela só aparece na transmissão em meio a um show de luzes sem sentido, cheios de banners de lojas de eletrodomésticos e operadoras de celular?

Como fazer uma criança querer desfilar em uma escola de samba se o Juizado de Menores, cada vez mais, restringe o acesso dela aos ensaios, seja de quadra ou técnicos na Sapucaí? E a extinção desenfreada das alas infantis nas escolas? As agremiações mirins são importantíssimas e devem ser incentivadas, mas elas jamais podem ser substitutas das escolas-mãe. É fundamental que uma criança vivencie a emoção de desfilar em sua escola de coração. A escola de seus pais, irmãos mais velhos, tios, avós e bisavós. Referência cultural de seu bairro, região, cidade. Que ela se sinta incluída e vivencie essa tradição. E que, quando estiver adulta, esteja pronta para perpetuá-la para seus filhos.

Não podemos podar esses galhos. Germinando novas sementes, manteremos os fundamentos sólidos.

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