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26
janeiro
2017

A pergunta e o Quilombo de Candeia

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoEntrou para a história do Carnaval (e mesmo do Brasil) a alfinetada genial de Joãosinho Trinta para se defender das críticas a seus desfiles inovadores, arrebatadores, com alegorias gigantes e muito luxo, a partir da metade dos anos 1970. No fim daquela década, em entrevista ao jornalista Cláudio Bojunga, ele disse o que seria publicado em seguida por Elio Gaspari: “O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual”. O inigualável João havia sido pentacampeão do Carnaval ao ganhar seguidamente dois títulos pelo Salgueiro (74-75) e três pela Beija-Flor (76-77-78).

Quase desconhecida até hoje, no entanto, é a pergunta feita pelo grande compositor e sambista Antônio Candeia Filho sobre a mesma polêmica carnavalesca em relação a luxo e riqueza, quando o gigantismo e uma progressiva descaracterização eram cada vez mais a tônica das escolas de samba. “Como pobre pode gostar de uma coisa que não conhece?”, foi o questionamento, também genial, de Candeia. Na verdade, esse era e ainda é o outro lado da mesma moeda da defesa, cada um no seu quadrado, da porção indissociável do Carnaval que são as escolas de samba do Rio de Janeiro.

Quando João Trinta – ex-bailarino e figurinista do Teatro Municipal que desabrochou como carnavalesco ao ser levado por Fernando Pamplona para o Salgueiro – disse o que disse, estava (está) certo. Quando Candeia – ex-policial truculento que ficou paraplégico ao levar um tiro e se transformou numa das vozes mais importantes do samba e da cultura negra e popular do Brasil – fez a sua pergunta, também estava (está) corretíssimo.

Um dia ainda pretendo escrever mais sobre Candeia, João e os legados tão diferentes quanto complementares que os dois deixaram para o samba como um todo. Por hora, na estrada em que já estamos a caminho de mais um Carnaval, quero dedicar algumas linhas ao Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombos (no começo tinha o s mesmo): o sonho de Candeia que a cada ano fica mais atual e mais necessário de ser sonhado de novo.

A história é conhecida. Descontente e sobretudo descrente com os rumos que a sua Portela estava tomando, ele tentou argumentar internamente, apresentou alternativas e ideias que sequer foram discutidas. Queria que o samba e os sambistas se mantivessem dentro de suas tradições, lutava pela garantia do espaço dos verdadeiros criadores do Carnaval, das comunidades, dos compositores, e não de invasores que sugavam (sugam) as escolas em benefício próprio e as deixavam (deixam) apequenadas, transfiguradas, sem alma.

Como não conseguiu ter ouvido seu premonitório diagnóstico, fundou o Quilombo com alguns companheiros. Entre eles, presentes desde o comecinho, Wilson Moreira, Casquinha (grande parceiro de Candeia na portela) e Paulinho da Viola. Candeia desejava que o Quilombo pudesse servir de alerta às demais escolas na defesa das suas raízes. Vanguarda pura, né não?

De um jeito bem resumido e que não dá conta da dimensão do que o Quilombo significou, os objetivos eram os seguintes: desenvolver um centro de pesquisas de arte negra; lutar pela preservação das tradições de uma atividade criativa popular; afastar os que quisessem deturpar a expressão das escolas de samba para transformá-las apenas em empresas rentáveis; atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira; e organizar uma escola de samba onde seus compositores pudessem cantar seus sambas, uma escola que servisse de teto a todos os sambistas.

Fundada em 75, a escola desfilou em lugares alternativos por alguns anos até ir definhando na primeira metade dos anos 80. Saiu também, a convite, nos desfiles das campeãs de 77 e 78, ganhando o apoio e o reconhecimento de gente como Nelson Cavaquinho, Cartola, Martinho da Vila, Monarco, entre muitos outros, inclusive de pesquisadores e de uma imprensa em grande parte ainda vibrante e inteligente – ou seja, nada a ver com a mídia dos nossos dias.

Principalmente até 1978, com Candeia ainda vivo, o Quilombo foi um sopro novo de vida para o samba, para o sambista e para o Carnaval. Foi uma utopia muito bonita, um soco na cara do Sistema, um movimento real de resistência, um sonoro não às imposições, aos donos do dinheiro, aos usurpadores da cultura do povo brasileiro. Nesse mesmo ano, ainda legou à música um dos mais belos sambas-enredo de todas as épocas, “Ao Povo em Forma de Arte”, obra-prima de Wilson Moreira e Nei Lopes.

É por isso que o Quilombo vive. E ele precisa viver para que os seus ideais nunca sejam esquecidos e para que o Carnaval não seja para sempre o que é hoje, um desfile de empresas e gringos e outros tipos de “artistas” etc. etc., as exceções confirmando a regra, ano a ano, é claro.

Deixo vocês com a transcrição exata da primeira frase de um documento com críticas e propostas para recuperar as tradições da Portela, idealizado por Candeia. De acordo com o excelente “Luz da Inspiração”, livro de João Baptista M. Vargens, foi elaborado e assinado por Candeia, André Motta Lima, Carlos Monte, Cláudio Pinheiro e Paulinho da Viola. Entregue em 11 de março de 1975 ao então presidente da escola, Carlos Teixeira Martins, o bicheiro Carlinhos Maracanã, abria precisamente assim:

“Escola de samba é Povo em sua manifestação mais autêntica!”

Nunca nos esqueçamos disso. Até.

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