Por um novo modelo de financiamento do Carnaval

ANDERSON BALTAR

anderson-baltarO presidente da União da Ilha, Ney Filardi, cantou a pedra no último sábado e, na manhã desta segunda-feira, o prefeito Marcelo Crivella confirmou a informação divulgada pelo mandatário insulano: a Prefeitura do Rio de Janeiro irá reduzir pela metade a subvenção das escolas de samba do Grupo Especial no Carnaval 2018. Ou seja, para fechar as contas de um desfile orçado em torno de R$ 8 a 9 milhões por escola, R$ 1 milhão a menos pingará nas contas das agremiações.

Para justificar à medida, o alcaide se valeu do mesmo papo hipócrita de outros prefeitos espalhados pelo país – que o dinheiro que seria “gasto” com o Carnaval seria “investido” em mais vagas em creches. Longe de mim ignorar a importância das creches para milhares de famílias carentes. Porém, é um escárnio que um evento que atraia R$ 3 bilhões para a economia da cidade mediante o ridículo investimento de R$ 60 milhões dos cofres públicos ainda sofra reduções em seu orçamento. Por outro lado, isso não me surpreende. O que esperar de alguém que tem laços figadais com uma das organizações mais sectárias e fundamentalistas desse país e que sequer soube cumprir seu papel institucional de fazer a entrega das chaves ao Rei Momo e colocar os pés na Sapucaí?

Está muito claro que, dentro dessa onda neo-conservadora que tomou conta do país nos últimos anos, existe toda uma estratégia montada para desmerecer o Carnaval como traço cultural definitivo do país. À visão europeizada de grande parte da elite, que se recusa a entender que vivemos em um país multiracial, miscigenado e sincretizado, junta-se as hordas neo-pentecostais, que, mediante imensas bancadas nas casas legislativas, tentam impor ao país a agenda mais retrógrada já vista por aqui desde a Velha República. Dizer que vai tirar dinheiro do Carnaval para investir em creches convence muita gente que não tem a menor vivência no mundo do samba. É triste, mas é a verdade. Cada vez mais vivemos em um gueto, cercados de artilharia pesada de todos os lados.

O que mais me entristece é que muitos sambistas não entenderam isso à época e, só agora têm suas fichas caindo. Não nos esqueçamos: esse senhor que hoje ocupa o Centro Administrativo São Sebastião foi eleito com os votos de muitos integrantes de escolas de samba. O hoje execrado Crivella foi recebido quase com honras de estado na Liesa, cantou sambinha em encontro público e teve bateria de escola de samba comemorando sua vitória. A demonização do discurso progressista uniu-se à falta de vontade de encarar a realidade de que o Carnaval das escolas de samba vive uma crise e precisa ser reinventado com participação fundamental do Poder Público – justamente o que o candidato derrotado observava, com um projeto específico para a folia elaborado por várias pessoas que a vivem cotidianamente. Agora, quem pariu Marcello que o embale – e arque com as consequências.

Girando o nosso periscópio, vamos colocar outra questão para discussão. Evidentemente que o Poder Público não pode deixar de participar, seja financeiramente, seja logisticamente do Carnaval. Mas, e o discurso, propalado por tantos anos, de que a Liesa tinha conseguido dar viabilidade econômica para as escolas de samba? Pelo andar da carruagem, subiu no telhado. E, para que a entidade faça valer a sua real importância, que é a de promover o desfile de forma igualitária entre as agremiações, cabe um questionamento importante: não seria a hora de colocar em xeque todo esse modelo e assumir que é necessário tomar um novo caminho?

Muitos dirigentes batem na tecla da crise econômica como a culpada de tudo. Afinal de contas, graças a ela, parceiros importantes como a Petrobras e o Governo do Estado foram perdidos. Mas, pera lá! Estamos falando ainda de dinheiro público! E os patrocinadores? Onde estão?

Ao longo dos anos, os cartolas das escolas de samba encararam o patrocínio no Carnaval de uma forma arcaica, vendendo os seus enredos e, salvo raríssimas exceções, não procurando ações de fidelização de marca – fundamentais para fixar patrocinadores nas agremiações de forma a não atrapalhar o projeto criativo de um Carnaval.

Será que não chegou o momento da Liesa buscar um modelo de patrocínio baseado no que é feito na Copa do Mundo e nas Olimpíadas? Ao invés de poucos patrocinadores com altas cotas, por que não pulverizar? Todo grande evento vive de dezenas de apoiadores, que, de acordo com seus tamanhos e possibilidades, adquirem cotas de maior ou menor grandeza. Será que não poderíamos ter várias empresas, de diversos segmentos, pagando valores interessantes para atrelar suas marcas ao Carnaval? Os grandes eventos esportivos se valem desse modelo, com patrocinadores pagando para serem a marca de celular, o café ou o chocolate oficial, podendo usar as marcas oficiais do evento em suas embalagens e lançando coleções alusivas à competição.

E que tal produtos licenciados? Acredito que grandes empresas gostariam de atrelar as marcas das escolas de samba a seus produtos. Qual torcedor não gostaria de ter utensílios domésticos, roupas ou até aparelhos de celular com os símbolos de suas escolas de coração? Para isso, bastaria criatividade e fugir do padrão souvenir-de-lojinha-de-aeroporto disponível nas boutiques das quadras.

A relação com a televisão também deve ser repensada. O valor repassado às escolas é ridiculamente inferior ao que a Rede Globo fatura com as cotas de patrocínio. Praticamente uma cota dessas banca todas as subvenções destinadas às escolas. A emissora do Jardim Botânico costuma vender cinco dessas cotas por ano – de onde podemos depreender que o lucro da Globo é fabuloso.

Além disso, a TV impõe entraves à divulgação de marca dos parceiros das escolas e entrega ao público uma transmissão bisonha, em que a metade inicial do desfile é ignorada para um patético Vídeo Show ao vivo na cabine montada na dispersão. O modelo atual de exibição do Carnaval não seduz novos corações para a folia. Ele desidrata completamente as escolas de samba em sua importância simbólica e cultural, transformando o que deveria ser principal em secundário. Não é mais uma competição de escolas, não há mais enredos passando e sambas sendo entoados por milhares de componentes. É tudo um show sensaborão, onde todas as escolas parecem iguais – esta é a principal percepção do público leigo. Vendo a transmissão da TV, a sensação do espectador é semelhante a de quem está nos mega-camarotes da Sapucaí – o desfile é apenas um detalhe; as pessoas estão mais preocupadas em dançar ao som de DJs e cair na “pegação”. Outras formas de transmissão – seja por TV a cabo ou por streaming viabilizados pela própria Liesa e bancados por patrocinadores, seriam ótimas soluções de arrecadação.

Estamos no fundo do poço. O prefeito não gosta de Carnaval e já deixou claro que não entende sua importância. Por outro lado, os gestores das escolas de samba, salvo raríssimas exceções, não renovam suas mentalidades e não procuram outras saídas para o financiamento da festa. A grande mídia ignora o tema durante quase todo o ano e, na época da folia, repetem um discurso raso e fomentador de preconceitos. E a Liesa ainda promove viradas de mesa, dando um tiro de bazuca no que deve ser o maior patrimônio de alguém que busca apoio, seja oficial ou privado: a credibilidade.

O que será do Carnaval das escolas de samba? É hora de encontrar soluções. Que os dirigentes abram seus corações e mentes. Tem muita gente boa por aí ansiosa para colocar projetos em prática e que sequer consegue chegar perto da sala da presidência de uma escola. Vamos abandonar, de vez, esse discurso bobo de “Maior Espetáculo da Terra” e procurar fazer do desfile das escolas de samba uma festa auto-sustentável, sem que os aspectos financeiros e culturais sejam contraditórios e inconciliáveis. É difícil? Sem dúvida. Mas é o único caminho palpável.

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