Portela, Império e o Carnaval de novo nos trilhos

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoEra uma vez um Carnaval desgovernado. No Rio, ele começou literalmente trancado pela burocracia. Até o começo da tarde da Sexta-feira Gorda – não riam, não riam! – a Chave da Cidade não havia sido encontrada pela prefeitura. Depois de localizada, no fundo de um armário municipal, o prefeito do Reino de Deus fingiu que não era com ele e se recusou a entregá-la ao Rei Momo.

Ali estava um prenúncio do desgoverno que nos espreitava da Sapucaí (alô, Setor 1!) e que não cochilou um minuto, chegando ao ápice quando carros alegóricos – desgovernados – de Paraíso do Tuiuti e Unidos da Tijuca feriram dezenas de pessoas, algumas gravemente. Enquanto isso, a única e humana saída – a paralisação imediata do desfile – foi solenemente ignorada pela Liesa e pela TV Globo, a dupla que há décadas governa e desgoverna o espetáculo. Tuiuti e Tijuca, culpadas pela tragédia, acabaram (tchan-rã!) premiadas com a permanência no Grupo Especial.

Era uma vez um Carnaval que, como um espelho do país que representa, foi tão desgovernado que os seus narradores oficiais não estiveram nem aí para os fatos. Ao mostrar arquibancadas vazias nos dias do Grupo de Acesso (por que não baratear ou mesmo distribuir os ingressos para quem gosta mesmo do espetáculo?), um repórter televisivo disse estar a Avenida “lotada”, sendo desmentido em tempo real pela imagem.

Já um seu colega, de nome Danilo Vieira, afirmou no Jornal Nacional de segunda-feira que Matinho da Vila (mostrado sobre um carro alegórico da escola) compôs o samba-enredo Kizomba, de 1988… Um erro crasso, indesculpável, algo assim como separar o sujeito do verbo com vírgula ou, deixa ver, como dizer “nós vai”.

Não acabou aí, não. A conhecida leviandade da televisão que monopoliza a transmissão do espetáculo foi, de novo, uma novela. Seus porta-vozes chegaram a chamar a ocorrência provocada pelas alegorias assassinas de “incidentes” e narraram o “desfile” da Tijuca praticamente como se nada tivesse acontecido, com vinhetas coloridas e o mesmo tom de sempre, deslumbrado e cheio de vazios elogios, que utilizam para todas as agremiações.

O barata-voa foi tanto que a falta de intimidade de Fátima Bernardes com o universo das escolas de samba dificilmente será superado algum dia (talvez apenas por ela própria). O quesito despreparo, para não usar palavra mais forte, foi gabaritado quando, durante o belíssimo desfile da Mangueira, a garota-propaganda de mortadela “identificou” para os telespectadores Oxóssi e São Sebastião… Amada, eram Oxalá e Jesus Cristo – e salve o grande Milton Cunha!

Era uma vez um Carnaval em que a gente viu muita coisa. O que a gente não viu, porque na hora a telinha nos entubava comerciais dos patrocinadores, foi a emocionante participação de Dominguinhos do Estácio, um tanto debilitado, dando o grito de guerra na Viradouro, a mesma que ele levou ao título há exatos 20 anos. A gente também não viu nem ouviu na tevê os agogôs do Império Serrano emocionando até poste no esquenta da escola, e muito menos o grito de guerra da Portela (e de tantas outras), coisas só “mostradas” pelas emissoras de rádio.

Desgovernado feito o carro alegórico da Ilha, que depois de cruzar a linha final da Avenida “Vai bater, vai bater, bateu!” no estúdio do plim-plim, o Carnaval que acabou de acabar teve também a porta-bandeira da Unidos de Padre Miguel torcendo o joelho na frente de duplos jurados (outro desgoverno, pra que módulo duplo?) e ainda uma moça desabando junto com o queijo de uma alegoria da Mocidade – escola que, fora isso, voltou a brilhar e a ter Wander Pires (agora ostentando uma desgovernada cabeleira do Zezé).

Era uma vez um Carnaval que teve também Ivete cantando, Ivete coreografada, Ivete dançando, Ivete paparicada, Ivete pulando, Ivete correndo muito, Ivete – mesmo sem estofo suficiente para ser enredo – levando a escola de Caxias nas costas. E ainda teve a Beija-Flor fazendo de si mesma um grande e embolado bloco. Entendi não.

Aí, quando ninguém esperava mais nada dele, o Carnaval do desgoverno burocrático-religioso-mafioso-televisivo foi salvo das cinzas. Dois de seus mais bonitos rebentos o redimiram. Portela e Império, Império (fazendo 70 anos de vida) e Portela (voltando ao topo depois de 33 anos e, sozinha, depois de 47!) pegaram-no no colo e, juntas, colocaram-no de novo nos trilhos, de volta a dois de seus mais emblemáticos berços: Madureira e Oswaldo Cruz, Oswaldo Cruz e Madureira.

Era uma vez, enfim, um Carnaval que – a não ser por uma única e insistente intrusa no reino das seis primeiras colocadas –, em meio a tantos desgovernos que nos assolam, fez tremular novamente, alta e muito, muito bonita, a gigantesca bandeira do samba de verdade.

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