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26
maio
2017

Presidente Gil

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoNesses tempos em que a cretinice anda mais do que nunca vestida de terno e gravata, tento buscar alguma leveza na parte da minha memória que é do samba e da boemia. Foi assim que noutro dia me lembrei do Presidente Gil.

Para resumir, Gil era, assim – como explicar? –, um patrimônio da bebedeira da Zona Sul carioca. Um rei sem trono de noites e bares e sambas e amigos.

Primeiro é preciso explicar que ele era o Presidente – como dizer? – da, da…mesa principal…do, do…“Cinco Estrelas”, pé-sujíssimo situado à Rua Barata Ribeiro, perto da Barão de Ipanema, em Copacabana. Simples assim.

Conheci-o há quase uma década, apresentado pelo meu amigo Gabriel da Muda, em noite memorável no – pausa para o embrulho no estômago – Leblon. Depois, estivemos juntos em apenas duas outras ocasiões.

Mesmo assim, é grande a admiração que até hoje sinto por ele. É que tenho a impressão de que tipos como Gil, o Presidente, ajudam muito a gente a entender e a captar um pouco melhor a vida real.

Dito de outra forma, a vida em toda a sua imperfeição tão colorida. Mas pode ser só uma impressão.

Naquela noite-madrugada de meio de semana, do Álvaro’s ao Bracarense o homem foi sendo efusivamente saudado, reconhecido, reverenciado, aplaudido pelos biriteiros ao longo do caminho. Depois, deu-se quase uma romaria até a nossa pequena mesa na calçada. Um assombro!

Primeiro no uísque, depois no chopinho, o Presidente contava suas histórias de outrora, quando foi cineasta, ator, boêmio e galanteador. Entre um gole e outro, dava suas dicas – absolutamente impublicáveis – sobre o tema “mulheres”. Cá pra nós, de uma sabedoria comovente. Entre um “conselho” e outro, um causo e outro, ainda cantarolava sambas antigos e muito Dick Farney. Coisa de cinema.

Já disse alguém que o bêbado, ao contrário do que alguns pensam, não é aquele que se esquece das coisas; é quem se lembra de todas elas ao mesmo tempo. Às vezes penso sobre isso e sobre como é difícil, mas tão necessário, compreender os boêmios, os bêbados – ou, nas palavras de um amigo, “os que, de fato, vivem”.

A última vez em que encontrei o Presidente Gil foi numa sexta-feira de samba. A lua estava cheia e o couro comia, ainda nos primórdios do “Samba Luzia”, roda de toda sexta na laje do clube Santa Luzia, no Centro do Rio, pertinho do aeroporto Santos Dumont.

Ao cumprimentá-lo efusivamente, ouvi dele a pergunta, ao pé do ouvido e em tom solene:

– Gostou da minha mulher nova?

– Gostei, Presidente – respondi, muito sem graça de elogiar a plástica da mulher de alguém para esse próprio alguém.

– Ela me custou cem reais! – ele mandou na lata, antes de soltar a longa e sonora gargalhada até então controlada a duras penas.

Presidente Gil, espero que ouça daí de cima (ou de baixo) esses meus pensamentos. É que na minha lembrança de todas as coisas juntas e misturadas, no fim das contas foi tudo (é tudo) uma só noite, grande e iluminada, à qual a gente tem que se agarrar se não quiser ser levado pelo Mal, hoje mais do que nunca vestido de terno e gravata pelas bandas de cá.

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