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29
agosto
2016

Repensando as disputas de samba

ANDERSON BALTAR

anderson-baltarCom a disputa de sambas iniciada em onze das doze escolas do Grupo Especial, é hora de voltar a comentar sobre algumas tendências que vislumbrava nesse blog há cerca de 45 dias. No artigo “Mais uma boa safra de sambas está nascendo”, além da observação óbvia do título, eu demonstrava preocupação com os efeitos da crise nas disputas de samba-enredo, já que se desenhava a tendência de poucos sambas inscritos nas escolas e da fusão de parcerias outrora rivais. Porém, cabe agora refletirmos qual o tipo de crise estamos abordando: a crise econômica do país ou a crise do modelo tradicional da disputa de sambas?

No que diz respeito à qualidade, creio que o título do artigo continua fazendo sentido. Em mais da metade das escolas tenho observado obras de grande qualidade. Como nota positiva, destaco a ótima safra da União da Ilha (a qual eu tinha grandes esperanças, como afirmei anteriormente), que possibilitará à tricolor insulana ter uma agradável dor de cabeça na hora de escolher o seu hino. Também fico feliz em ouvir obras na Mocidade que surpreendem por dar vida a um enredo pouco cotado. Espero ótimos sambas da Beija-Flor, Portela, Mangueira e Imperatriz. Importante destacar que ainda não fui a todas as quadras e prefiro fazer comentários mais precisos depois de ouvir os sambas pessoalmente. Uma gravação em MP3, na maioria das vezes feita às pressas no dia da inscrição, não pode ser um parâmetro definitivo de avaliação. O samba-enredo é orgânico, ganha forma a cada semana de apresentação na quadra e vai numa escalada firme até o teste final, que é o desfile.

Conforme previa, a maioria das escolas de samba contou com um baixo número de sambas inscritos. Poucas receberam mais de 20 concorrentes. Nem de longe quero dizer que quantidade é qualidade, muito pelo contrário. Mas é preocupante notarmos que escolas que recebiam em torno de 50 a 60 sambas hoje recebem 30. Quem inscrevia 30, larga com 10 ou 12. Números tão baixos prejudicam o planejamento das escolas, que, em vários casos, contam com mais datas para o concurso do que sambas para corte.

Muitos dirão que a crise econômica foi determinante. E não duvido. Realmente, os investimentos para entrar de forma competitiva em uma disputa de samba estão cada vez mais astronômicos e, em tempos bicudos, não está nada fácil encontrar mecenas. Várias parcerias se juntaram e aberrações como sambas com oito, dez compositores, tornou-se algo normal e corriqueiro. Isso sem falar nas famigeradas “participações especiais”.

Creio que este seja o modelo de refletirmos de uma forma mais ampla. Não é apenas uma crise econômica que atravessamos. A disputa de sambas vive uma crise existencial. Aprisionada por um modelo injusto, pela elefantíase dos gastos desnecessários, dos palcos mais fortes do que qualquer carro de som de escola do Especial. Com um festival de adereços desnecessários, distribuição de camisas, torcidas remuneradas e filas de ônibus nas portas das quadras. Pior: com as escolas, em sua grande maioria, trabalhando no vermelho, já que há uma grande distribuição de ingressos e as torcidas, geralmente, consomem bebidas do lado de fora das quadras, em concentrações bancadas pelas parcerias.

Soluções para esse quadro altamente excludente para quem não tem patrocinadores ou “participações especiais”? Difícil apontar de forma generalista. Acho que cada escola deve encontrar o seu modelo. Algumas agremiações já caminham para fazer uma disputa um pouco mais condizente com a realidade. Já havia destacado anteriormente as disputas curtas na Portela e Ilha (e Vila Isabel seguirá o mesmo modelo). A São Clemente (foto) só incentiva o uso de torcidas na semifinal e na final. Mas me confesso encantado com o que a Beija-Flor está fazendo em seu barracão. De uma forma praticamente minimalista, os sambas se apresentam e podem demonstrar as suas reais qualidades: melodia e letra. Até porque, como dizem 11 em 10 diretores de Carnaval, pirotecnia não ganha disputa de samba. O que ganha é a qualidade e a adequação ao projeto de desfile.

Precisamos também rediscutir, para ontem, o conceito de ala de compositores. O samba não é mais como era há 50 anos, quando apenas um restrito grupo de poetas disputava, até de forma cavalheiresca, o direito de ter o samba cantado na avenida. O samba-enredo virou produto cultural e atraiu patrocinadores e laranjas – estes por sinal, existem desde que o samba é samba.

Não adianta cobrar exclusividade de compositor enquanto outras parcerias possuem sambas feitos por compositores de outras escolas que optaram por não assinar. Por mais triste que seja para os saudosistas, estamos em uma nova realidade e precisamos encará-la sem hipocrisia. É possível termos alas de compositores mais orgânicas? Sem dúvidas! Basta termos critérios bem definidos para acesso às mesmas, que os sambas de terreiro sejam incentivados e que as escolas entendam que essa maluquice que vivemos não leva a nada. Mesmo assim, é uma luta árdua, como qualquer outra travada em um ambiente onde há grandes compensações financeiras. Porém, enquanto não vemos modificações mais drásticas ocorrendo, temos que encarar a realidade de frente. O samba tem de ser julgado pelo que ele é e não por quem o fez.

Entendo que a escola deve zelar pelas suas características rítmicas e de desfile. Fazer um samba pra Ilha ou São Clemente é bem diferente de se fazer um samba para a Portela ou Mangueira. Mas, se o mesmo compositor acertou a mão em agremiações tão díspares e fez sambas dignos de ir para a avenida, porque não premiá-lo? Por que não dar o mérito a quem de direito? Até quando vamos aplaudir “poetas” que só pegaram a caneta para assinar o cheque?

***

Para encerrar, deixo para você uma preciosidade. Por conta de um tópico no Facebook, o querido Alberto Mussa, sobrinho do imortal Didi, me enviou o samba que ele compôs para a disputa da União da Ilha no Carnaval de 1983. A obra, que sacudia a recém-inaugurada quadra da Estrada do Galeão, foi cortada na semifinal. O motivo? Didi estava, sem assinar, com um samba no Salgueiro (que por sinal venceria a disputa na escola tijucana). Sem dúvida, vivíamos tempos em que as escolas ainda possuíam alas de compositores orgânicas e o fato foi tratado como inaceitável. Porém, a Sapucaí perdeu a oportunidade de ouvir um samba antológico. Ouça:

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