Safra interessante em 2014

ANDERSON BALTAR

A safra de sambas para o Carnaval 2014 está definida. E, num primeiro olhar, ainda muito baseado na forma como os hinos como foram apresentados nas quadras, posso dizer que teremos um CD do Grupo Especial muito interessante – aliás, como há alguns anos não víamos. Depois de uma terrível década, os sambas estão numa curva ascendente de qualidade. Pelo menos metade das escolas têm composições interessantes e que podem crescer muito a partir da gravação e dos exaustivos ensaios que estenderão até março.

O que teria motivado essa situação? Cito alguns aspectos. O primeiro, e mais óbvio, foi a redução sensível da quantidade de enredos de qualidade ou entendimento duvidosos. Sim, sei que enredo se julga na avenida. Mas, até o momento, o que temos é o argumento, baseado nas sinopses. E, não se iluda: se o argumento é falho, a chance do enredo ter uma sobrevida é quase mínima. Não por acaso, as escolas que largam atrás no quesito samba-enredo têm enredos de construção e elaboração no mínimo contestada.

Não tem mistério: quando o compositor sabe do que tem que falar e, acima de tudo, vê que aquela sinopse está dentro da sua verdade e, mais do que tudo, da verdade da escola, a inspiração floresce na hora. Samba bom nasce no sentimento genuíno, na frase que sai do fundo do coração, como os sambas do Salgueiro e da Mocidade Independente de Padre Miguel deixam claro na primeira audição. São testemunhos de fé, de amor, inspirados por argumentos que tocam fundo no alma dos compositores e dos componentes da escola.

A verdade é uma só: enredo bom causa ansiedade no compositor. Ele sai da quadra com a sinopse embaixo do braço ansioso para se juntar com os parceiros. Leva para cama e a lê antes de dormir. Batuca no intervalo do trabalho pensando no refrão, anota até no canhoto da conta de luz que acabou de pagar. Acorda de madrugada pensando na melodia. E, em sua maioria, os enredos de 2014 propiciaram esse frisson gostoso nos poetas das escolas.

Outro aspecto que não pode ser deixado de lado é que o carnaval sempre é ditado pelos parâmetros criados pela campeã. E a vitória da Vila Isabel em 2013 teve o dom de propiciar a redenção do quesito samba-enredo. Por mais importante que seja no julgamento (dele dependem, no mínimo, outros cinco quesitos), o samba estava sendo deixado de lado há muitos anos. O importante era o visual, o barracão, as surpresas que os gatos-mestres da Cidade do Samba estavam aprontando. Com a antológica obra de Martinho da Vila, Arlindo Cruz, André Diniz e parceiros, o samba-enredo foi recolocado em seu lugar. Como fio condutor de um desfile e maior estimulante para a consagração de uma escola.

Não citei Martinho e Arlindo gratuitamente. Nenhum dos dois é novato na seara carnavalesca, muito pelo contrário. Mas, justamente o sucesso da parceria fez despertar em muitos compositores da MPB o interesse pelo samba-enredo. Na minha visão, uma janela aberta para a revitalização do gênero e uma possibilidade para a volta da popularização.

Tivemos Pedro Luis, Jorge Aragão e até Francis Hime nas disputas de samba. Carlos Caetano e Péricles, reconhecidos no meio do pagode, chegaram às finais. E dois dos 12 sambas são assinados por nomes de peso na música popular: o da Imperatriz, de Elymar Santos, que promete ser o arrasta-quarteirão da temporada; e o de Dudu Nobre, da Mocidade, que vai brigar para ser um dos grandes sambas do carnaval. Dudu, é bom que se diga, não caiu de paraquedas. Irmão da porta-bandeira Lucinha, tem histórico nas escolas mirins, mas nunca havia encarado o desafio de disputar samba em sua escola de coração. E estreou de forma magnífica.

Muita gente torceu o nariz, mas vejo com ótimos olhos esse movimento. Se as escolas continuarem julgando as obras ao invés do nome, esse intercâmbio será ótimo para o gênero samba-enredo, que se revitalizará, e também para os compositores das escolas, que passarão a ter portas abertas para o chamado mercado “do meio de ano”.

Análise da safra

Apesar de ser um tanto prematuro, faço aqui a minha primeira análise da safra. Cabe lembrar que ouvi oito sambas ao vivo e os outros quatro só conheço de gravação.

– Salgueiro e Mocidade, na minha opinião, têm os melhores sambas do ano. São os mais completos no que diz respeito a enredo, qualidade de letra e, principalmente, empatia com a identidade da escola. Ambos são feitos para se cantar batendo forte no peito e com os olhos marejados.

– Portela, mais uma vez, traz um samba de muita qualidade e estrutura diferenciada. O enredo é maravilhosamente descrito e, na final, a melodia já entrou na quadra totalmente encaixada com a bateria. Foi algo mediúnico, poucas vezes visto.

– União da Ilha, Imperatriz e Mangueira prometem sacudir a avenida. A Ilha, finalmente, escolheu um bom samba e ouviu a voz da comunidade. Com uma bateria renovada e o ótimo trabalho plástico dos últimos anos, tem tudo para fazer um carnaval memorável. A Imperatriz tem o refrão do ano e deverá viver um momento histórico – a consagração total do público, rara em sua trajetória. O samba da Mangueira tem refrões explosivos e promete conduzir o arrasta-povo que só a verde e rosa sabe fazer.

– São Clemente e Império da Tijuca têm sambas agradáveis e de qualidade. Teoricamente, as duas brigam pela permanência no grupo e, pelo visto, a disputa será acirrada inclusive no samba-enredo. A escola de Botafogo partiu para uma linha mais lírica e o povo da Formiga vem com um samba valente – ideal para abrir desfile.

– Vila Isabel é o samba que mais pode surpreender. Depois da consagração do carnaval passado, pouca gente prestou atenção na composição de Arlindo Cruz, André Diniz, Bocão e sua turma. O samba tem ótima letra e melodia interessante. Quando o efeito “Festa no Arraiá” passar, creio que este samba começará a ser melhor notado. Não é todo dia que um craque faz gol de bicicleta; esse foi um tento com toque na saída do goleiro. Não tão impactante, mas também importante.

– Beija-Flor, Tijuca e Grande Rio têm os sambas mais fracos da safra. Não por acaso, os três enredos mais complicados.

Para encerrar, um pedido

Que as assessorias  de imprensa das escolas não encarem isso como crítica, até porque eu tenho certeza de que sua área de atuação nas quadras é bem limitada – fui assessor e sei bem disso. Há muitos entraves dentro das agremiações e muitos dirigentes ainda não entendem  – ou não querem entender – a importância do trabalho da imprensa nas quadras. O fato é que as condições de trabalho precisam melhorar. É frustrante chegar para transmitir e, salvo raríssimas exceções, encontrar áreas mal localizadas e apertadas, com poucos pontos de luz e sem internet de qualidade.

Jornalista está na quadra para trabalhar. Não está para comer e beber – sei que muita gente pensa isso da imprensa e, infelizmente, alguns colegas dão razão a esse tipo de comentário. O jornalista só quer ter condições mínimas de trabalhar. Com a internet e a popularização das redes sociais, o público potencial do carnaval só multiplica e as pessoas, onde quer que estejam, querem saber de tudo em tempo real.

Frustra um pouco saber que, em alguns momentos, não conseguimos suprir essa demanda de informações por fatores que fogem à nossa área de atuação, mas poderiam ser minimizados com procedimentos simples. Basta apenas reservar um lugar digno, com algumas mesas e pontos de luz. E, se possível, internet para todos. Qualquer local de grandes eventos no mundo tem sala de imprensa. As quadras, que a cada dia mais se transformam em casas de show, precisam se adaptar a esta realidade.

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