Sambando na cara do bispo

ANDERSON BALTAR

anderson-baltarAo longo de seus quase 90 anos de existência, as escolas de samba sempre se valeram do adesismo para sobreviver. Natural. Afinal, foram nascidas nos morros e subúrbios da cidade, constituídas por gente simples, humilde, quase sempre negra e que necessitava, antes de tudo, que pudesse ocupar as ruas da cidade sem que fosse importunada pelo poder público. Desta forma, com um bom jogo de cintura, os sambistas souberam surfar nas ondas da reafirmação do discurso oficial como um salvo conduto para suas atividades.

Data do Estado Novo, regime ditatorial comandado por Getúlio Vargas, a obrigatoriedade do tema nacional para os enredos – que, por sinal, não foi imposta aos sambistas, mas nasceu de seus dirigentes, como uma retribuição à oficialização dos desfiles das escolas no calendário da cidade. A partir daí, por décadas, os grêmios recreativos seguiram a agenda do poder oficial, estabelecendo um acordo tácito com quem estava no poder. Por alguns momentos, essa agenda foi afetada, mas também em busca de apoio de forças políticas ascendentes. O melhor exemplo foi a aproximação com o antigo Partido Comunista em seu raro momento de legalidade, no final dos anos 1940.

Salvo exceções louváveis, como “Herois da Liberdade” (Império Serrano – 1969), as escolas sempre levaram para a avenida enredos de total acordo com a ideologia e anseios dos grupos políticos dominantes. A revolucionária fase do Salgueiro, comandada por Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, trouxe um novo olhar para a questão racial, trazendo o negro como protagonista, mas sem romper completamente com o establishment.

Desnecessário lembrar que as escolas de samba, em vários momentos, apresentaram temas simpáticos à ditadura militar. Porém, é fundamental salientar que a Beija-Flor, tão estigmatizada com essa missão, não foi a única agremiação a bater continência para os milicos na avenida. As realizações do governo autoritário foram saudadas por escolas como Mangueira e Vila Isabel – esta que, por sinal, cortou um samba antológico de Martinho da Vila (posteriormente gravado como “Tribo de Carajás”) por conta de suas críticas à construção da rodovia Transamazônica.

Nos anos 1980, em meio ao enfraquecimento do governo dos generais, surgiu outra exceção: a Caprichosos de Pilares, que, corajosamente, soltou balões com uma faixa pedindo eleições diretas em seu desfile de 1984. Apesar de ser uma década com enredos de forte cunho político/satírico, as escolas de samba não perderam o viés adesista. A partir de 1985, mesmo com todas as tintas do humor despejadas nos políticos da época, a Nova República e a Constituição de 1988 surgiram nos enredos como a grande solução para todos os males do país.

A partir da década de 1990, com a proliferação dos enredos patrocinados, as escolas de samba passaram a falar pouco de política na avenida. Mas, mesmo assim, sempre alinhadas com o discurso oficial ou com a opinião pública. Com a ascensão de Lula ao governo, a Beija-Flor de Nilópolis conquistou o campeonato em 2003 fazendo uma exaltação ao programa Fome Zero. No momento em que o governo Dilma naufragava no Congresso e nas pesquisas de opinião, a Mocidade Independente promoveu a sua “prisão” em plena avenida.

Feito todo esse preâmbulo, cabe destacar o momento que vivemos. Com a verba cortada em 50% pelo prefeito Marcelo Crivella – nunca custa lembrar, fruto deste adesismo, já que foi eleito com o apoio da totalidade dos presidentes da escolas e da Liesa -, pela primeira vez uma escola de samba tem a audácia (no melhor sentido da palavra) de levar para a avenida um enredo que bate de frente com o poder constituído. Encarando o prefeito-fundamentalista-demagógico, Leandro Vieira pretende mostrar na avenida que, mesmo com a incapacidade do bispo alcaide de conviver com o diferente, nós vamos brincar Carnaval. Queira ele ou não.

Seguindo a esteira do que Império Serrano e São Clemente haviam feito na já longínqua década de 1980, a Mangueira promete também, de forma corajosa e necessária, questionar o modelo de Carnaval que temos atualmente. Este formato, acometido pela elefantíase do espetáculo vazio, muitas vezes carente de alma, a cada vez mais transformado em um mero show televisivo. Este tema, instigante desde o seu anúncio em uma entrevista, já entra para a história do Carnaval por obra e graça da mente brilhante de um artista, dos mais completos e antenados que surgiram nos últimos anos. E também, obviamente, da coragem da Mangueira em assumir essa briga, em um momento em que a opinião pública apoia, de forma esmagadora, a decisão esdrúxula de Crivella.

A verde e rosa, tem uma importância inequívoca para a história do Carnaval e, tem participação decisiva em todo este processo de acomodação. Sua fundação serve para neutralizar o Bloco dos Arengueiros e mostrar que era possível que aquela turma do morro poderia brincar o Carnaval sem causar confusão. Além disso, não custa lembrar o papel de Cartola em todo o cenário da transformação do samba em patrimônio cultural nacional, encampado pelo governo Getúlio Vargas. E vale sempre ressaltar a importância da atuação de suas grandes damas, D. Zica e D. Neuma, em aglutinar a comunidade em torno da escola e sempre se colocarem como porta-vozes da mesma perante às autoridades. Essa marca é tão forte na trajetória mangueirense, que não à toa, seu presidente atual é deputado estadual.

Uma das fundadoras de toda esta festa, quase nonagenária, cabe à Estação Primeira de Mangueira o papel de, assim espero, estabelecer um novo parâmetro na relação entre as escolas de samba e o poder público. Que se acabe de vez com a preguiçosa conciliação e que dê a partida para a época da contestação com inteligência. E que as escolas de samba aprendam com seus erros e se refundem a partir da mensagem do enredo da verde e rosa. Que, aos poucos, se reconciliem com o povo e se convençam de que não há espetáculo mais belo do que o proporcionado pelo samba no pé e pelo ritmo único de nossas baterias.

Veja Também

Artigos Relacionados

Categorias

Navegue por Assunto

Recentes

As Últimas da Arquibancada