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20
julho
2016

Tempo virou

LUIZ ANTONIO SIMAS

luiz-antonio-simasOs terreiros das escolas de samba cariocas (e não “quadras”, como se denominam hoje) obedeceram durante muito tempo a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé. O acesso à roda, por exemplo, era permitido somente às mulheres, que cantavam os sambas girando no sentido anti-horário, conforme giram as rodas de yaôs nas casas de culto. Os fundamentos religiosos das agremiações, em larga medida, se perderam ou estão diluídos a ponto de não serem mais reconhecidos.

Apesar dessa “desafricanização” dos fundamentos, as agremiações são, até os dias de hoje, veículos em que a temática africana é recorrente; ainda que seus enredos e sambas enfoquem, salvo exceções, a África por uma perspectiva predominantemente folclorizante e curiosamente distante (a “África misteriosa”; a “África de mistérios e magias”; e outros clichês constantemente repetidos nas letras dos sambas exemplificam isso).

O samba-enredo é uma modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema elaborado como enredo de uma agremiação. Os primeiros sambas-enredo, de livre criação, abordavam normalmente a natureza, o próprio samba e o cotidiano dos sambistas. Com a oficialização dos concursos, na década de 1930, passou a predominar a exaltação dirigida aos personagens e efemérides da História oficial, em um processo de negociação entre os sambistas e o poder instituído que incluía a disputa pelas subvenções.

A reversão desse quadro começou a ganhar contornos mais efetivos – ainda que viesse se insinuando antes – em 1959. Naquele ano o Salgueiro apresentou uma homenagem ao pintor francês Debret, retratando o cotidiano dos negros no Brasil à época da colônia e do Império; o que motivou uma sequencia de enredos da escola, ao longo da década de 1960, sobre o Quilombo dos Palmares, Chica da Silva e Chico Rei.

Desde então, no universo dos enredos apresentados pelas escolas de samba cariocas e fluminenses das várias divisões, as referências mais diretas à África, notadamente no campo das religiosidades, se fazem constantes.

Com poucas exceções (como os enredos referentes aos cultos jejes da Unidos do Cabuçu, em 1981, e da Beija-Flor, em 2001), é notória a predominância, no campo religioso, das referências ao culto iorubá dos orixás nos enredos das agremiações. Este fato certamente se explica pela maior visibilidade que esta matriz, notadamente através da Bahia, tem no Brasil.

Exatamente por isso me parece que um dos enredos culturalmente mais importantes de 2017 é o da União da Ilha do Governador, que fala sobre a criação do mundo a partir da referência dos bantos, grupos angolo-congoleses fundamentais na formação do complexo cultural afro-brasileiro: Nzara Ndembu: Glória ao Senhor Tempo. Fico feliz em ver que Tempo, inquice patrono do povo do candomblé de Angola, será louvado ao lado de outros inquices bantos.

Os cultos bantos sofreram dupla discriminação no Brasil: a do estúpido preconceito branco e a do discurso do nagôcentrismo, uma produção intelectual que atribui ao sistema iorubá uma estrutura sofisticada e pura e inferioriza os saberes religiosos centro-africanos (é só ver como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Pierre Verger, dentre outros, reproduzem isso), muitas vezes os limitando ao campo da prática do feitiço degenerado pela assimilação de saberes íbero-ameríndios. Qualquer iniciativa que redimensione isso, como a da Ilha, é alvissareira para a cultura brasileira de base africana.

Em um contexto crítico de longa duração – faz tempo que as escolas de samba parecem cada vez menos entidades associativas comunitárias para se caracterizar predominantemente como empresas da indústria do turismo – o enredo da Ilha é uma esperança. Este apaixonado por escolas de samba do Brasil e pelos inquices do grande Congo agradece.

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