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17
fevereiro
2017

Um sonho de verão

EDUARDO CARVALHO

eduardo-carvalhoPassa das seis da tarde quando chego ao Sousa, o pior bar do mundo. Na Praça Sete, Vila Isabel, o calor é forte. Logo pergunto pelo Brandão ao Cláudio Renato, meu amigo e morador da área – que desconhece o paradeiro do homem no momento. Dou um gole na cerveja apenas fria que o Sousa vende e trato de explicar esse enredo.

Lá onde o Brandão mora com uma parente, o aparelho de ar condicionado vive quebrando. Então, nas manhãs seguintes ao infortúnio que lhe imputa noites em claro e banhado em suor, seja Verão ou Inferno (as duas estações do Rio), é ali na praça que ele embarca num 439 refrigerado rumo ao Leblon. Idoso: não paga. Vai dormindo, deitado no fundo do coletivo. Chega ao bairro dos bacanas e, depois de rápido passeio, está de novo instalado no ônibus geladinho, dormindo. E assim, em duas ou três idas e voltas, recupera o sono da noite anterior.

Já nós, na quentura que agora evapora do chão, começamos a caminhada rumo à Visconde de Abaeté. Antes de descer o Boulevard do bairro de Noel, acenamos para o Ibelário – ilustre local conhecido por dar filé mignon aos dois cachorros e por ter mandado celebrar na Candelária a missa de sétimo dia de outro cão, o primogênito que tanto amava. Vamos pisando com carinho nas pedras portuguesas que estampam notas musicais até chegar ao ponto de onde partirá a Vila para mais um ensaio na rua.

Observo desfilantes chegando em grupos, ritmistas aprontando surdos, caixas, taróis e tamborins, ambulantes ocupando as esquinas com churrasquinhos, cachorros-quentes e bebidas, bandidos disfarçados, botequins abarrotados, velhos e moços espiando de suas janelas… e penso no trecho do samba de Moacyr Luz e Martinho da Vila: “Vila Isabel / Meu Deus, como tu és / De chorar de emoção (…) / Os teus componentes, que beleza / Estão em seus corações recordações / E eles são a ti fiéis”.

A essa altura, a emoção já está sentada nas nuvens brancas sob céu azul ouvindo outro pedaço da canção cantando “E assim, de branco e azul / Tens orgulho de ser / Afilhada da Portela”… meu Deus… Fora da cabeça, toca o aquecimento “Sou da Vila, não tem jeito / Comigo eu quero respeito”, toca “Kizomba”, toca o bom samba da escola para o desfile que já se aproxima. E aquele “afilhada da Portela”, enquanto rodopiam as baianas, atira-me de volta ao domingo anterior.

Foi quando voltei à Sapucaí, velha senhora de tantos antigos “eus” que já fui na vida. Estava prontinho para criticar a segregação filha do poder da grana que destrói o Carnaval. Desisti. A boniteza de chegar à arquibancada e ver o povo dando um jeito, mais um, qualquer um, de curtir de verdade a sua festa – ou o que resta dela –, calou a minha mágoa.

Aqueles degraus de cimento, quentes ainda que já noite fosse, abrigavam uma infinidade de isopores, coolers (!), sanduíches trazidos de casa, sorrisos, rebolados, enfim, uma farofada gostosa de amor e paz, tão entendendo? É tocante quando cai a ficha de que, para muita gente, muita mesmo, ir ao “ensaio técnico” no palco do grande espetáculo, do jeito que deixam (e de graça), se transformou no próprio Carnaval, numa folia possível e colorida.

Aquele sentimento fincou pé no meu peito que não saiu mais de lá. E foi com ele que, dois dias depois, eu desci direto na plataforma da Estação Primeira. Vi a Menina de Oyá Bethânia abrir os trabalhos do Carnaval da fé da verde-rosa com “Emoções”, do Rei Roberto. Depois, foi a vez de Leci cantar sambas-afros e receber Fafá de Belém soltando a voz em “O Sol Nascerá”. Teve Sombrinha, teve Elba, teve o grande Tantinho da Mangueira me fazendo soluçar ao emendar “Folhas Secas” com “Sei lá, Mangueira”. Teve Chico. Teve Alcione. Um sonho de verão.

Acordo e por um instante me vejo a bordo do 439, olhando para uma lista de marchinhas proibidas grudada na janela e perguntando ao Brandão, como fizera Chico Buarque da Mangueira na véspera, ao entrar no palco:

– “O que será, que será?”

O velho malandro da Vila assovia para uma linda mulata que passa, chama de sapatona a apontadora do bicho – que sorri de volta – e me confessa a saudade insuportável que sente da Amélia.

Depois, em transe, ele repete a minha pergunta e, tremendo de frio, desanda a murmurar “que andam combinando no breu das tocas; que anda nas cabeças, anda nas bocas; que vive nas ideias desses amantes; que estão falando alto pelos botecos; que juram os profetas embriagados; que está na fantasia dos infelizes; que está no dia a dia das meretrizes; o que não tem certeza nem nunca terá; o que não tem governo nem nunca terá; o que não tem censura nem nunca terá, o que não faz sentido…”

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